quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

EVERY TIME YOU SAY GOODBYE



Escrever acerca das realidades existentes nos sonhos é extremamente complexo. Sonhos não são realidade, e o que lá sucede nem sempre faz sentido. Escrever sobre os sonhos. É tão difícil destrinçar essa fronteira, é ainda mais difícil quando um sonho se transforma numa realidade confusa e revoltosa. As explicações desses fenómenos são difíceis para qualquer escritor.
Somos criaturas factuais alicerçadas na ciência e no rigor. Não gostamos de ser sobressaltados com fenómenos inexplicáveis. Isso não é aceitável.
Um sonho que se transforma em realidade é considerado um desarranjo incoerente e disfuncional. Um autor afirmou, certo dia, ter descoberto vários pontos de contacto entre sonho e realidade. Nesse dia memorável acreditou no inconcebível, e a sua visão tornou-se real. Conseguiu decifrar algumas das forças desconhecidas que foram criadas para nos desconstruir. O caos deixou de estar oculto por entre os intervalos dos universos, que são violentos. As palavras destruídas, desorganizadas e desalinhadas do escritor passaram a fazer sentido e enfrentaram a realidade como se de um sonho se tratasse. Ele passou a compreender as forças que comandavam os sonhos, entendeu as suas fronteiras e conseguiu explicar muitas realidades ocultas antes mesmo delas acontecerem. Confirmou a existência de mensagens nos sonhos, e escreveu que em todos eles existem diferentes códigos de decifração.

E se as palavras lhe fugissem de vez?
Rui continua com receio que elas lhe fujam de vez.
Como será a sua vida se isso lhe vier a acontecer?
Daniel chegou na altura certa, e o escritor reinventou a vontade de arriscar. Cada pessoa é como uma história ao vento, uma liberdade, mas não basta olhar para elas, é preciso sabê-las imaginar. Escrever é uma tarefa árdua e complicada. As frases são difíceis de encontrar, e precisam de ser trabalhadas até acordarem nas folhas vazias de um qualquer caderno.
O invisível decidiu abraçar uma estranha cruzada, partiu ao encontro dos lugares mais violentos dentro de cada uma das personagens da obra. A história estava a desagregar-se, ao contrário das galáxias e dos sistemas planetários. A obra foi atacada por um vírus destruidor que a lançou no caos e abrandou todas as rotações conciliadoras que davam consistência ao enredo.
- Hoje vou ter com Helen. Pensei imenso nela, e nunca deixei de a ver. Está a trabalhar na sinfonia e pediu-me para passar lá por casa depois das oito.
Daniel está em frente ao Rui que o pressente de imediato, quase ameaçador. Está muito magro, com uma tez pálida e uma barba de duas semanas mal semeada no rosto. Os olhos do invisível leem a alma do escritor.
- Tens de resolver esse assunto de vez, Rui! Tens de deixar-te ir, não há volta a dar. Não esperes até ao fim do dia para a visitar. És demasiado previsível, é sempre tão fácil adivinhar o que vais fazer, e o que vais dizer. Surpreende-me! Surpreende-me surpreendendo-te! Será que só consegues assumir riscos calculados? Que mal virá ao mundo se fores de imediato bater à porta da pianista? Tens receio que ela não te queira? Ainda não te conseguiste perdoar pela tua escolha naquele dia, não é verdade? Não te perdoas por teres sido tão ridículo ao ponto de não teres percebido o que estava implícito naquele convite que Helen te fez. Escolheste terminar o teu romance no dia em que a irlandesa se preparava para te entregar, em definitivo, o seu coração. Foi uma triste coincidência teres sentido aquele fervilhar de criatividade logo nessa data. Terminaste a tua obra no mesmo momento em que pensaste ter perdido o amor da tua vida. Devias saber melhor como são exigentes as mulheres, Rui. E agora, deixa de te comportar como um imbecil! Mas que merda! Por uma vez na vida, obedece sem reservas àquilo que o coração te comanda!
Daniel está de regresso, e regressou em força.
Rui ficou sem respostas, e obedeceu.
São três horas e um quarto.
Helen dá asas ao seu talento prodigioso, e o som do piano espalha-se por todo o prédio. Rui só irá bater à porta da irlandesa quando ela parar de tocar.
A melodia consegue fazê-lo voar, é morna e refrescante como uma flor adocicada.
A pianista tem a janela aberta, como é seu hábito, para que o Tejo e a luz ímpar de Lisboa a inspirem.
A melodia descreve a cidade, descreve as paisagens do sul da Ilha Esmeralda, o cheiro da brisa do mar e todos os perfumes da baía de Summercove. O presente e o passado encontram-se combinados naqueles sons encantadores, seduzem numa cadência celta quase tão expressiva como os acordes que descrevem a saudade lusitana, o amor, a solidão e a chama imensa da paixão. Helen toca nua e livre, a sua canção nasce como uma aventura, nasce despida como o homem, e despida se levanta, e cresce e alcança.
A pianista apercebe-se que o ar está mudado e que as notas vibram com outra sonoridade. Alguém a escuta do outro lado da porta.
Rui chegou mais cedo, muito mais cedo.
Helen sabia que isso podia acontecer. Rui acabou de escapar a um fim trágico, num outro tempo, num sonho tão real como este onde eles habitam.
Era de prever.
Antes de terminar de acariciar o piano, os seus acordes transportam-na até uma melodia de Cole Porter que ela se apressa a adaptar para poder incluir na sua obra.
O universo parou quando a pianista terminou de tocar.
Rui decide, finalmente, bater à porta.
As suas obras, tal como os sonhos, tal como o universo e o tempo, passarão a ser reais, tão reais como as palavras destruídas, desorganizadas e desalinhadas do precioso escritor.


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