Escrever acerca das realidades existentes
nos sonhos é extremamente complexo. Sonhos não são realidade, e o que lá sucede
nem sempre faz sentido. Escrever sobre os sonhos. É tão difícil destrinçar essa
fronteira, é ainda mais difícil quando um sonho se transforma numa realidade
confusa e revoltosa. As explicações desses fenómenos são difíceis para qualquer
escritor.
Somos criaturas factuais alicerçadas na
ciência e no rigor. Não gostamos de ser sobressaltados com fenómenos
inexplicáveis. Isso não é aceitável.
Um sonho que se transforma em realidade é
considerado um desarranjo incoerente e disfuncional. Um autor afirmou, certo dia, ter
descoberto vários pontos de contacto entre sonho e realidade. Nesse dia
memorável acreditou no inconcebível, e a sua visão tornou-se real. Conseguiu
decifrar algumas das forças desconhecidas que foram criadas para nos
desconstruir. O caos deixou de estar oculto por entre os intervalos dos
universos, que são violentos. As palavras destruídas, desorganizadas e
desalinhadas do escritor passaram a fazer sentido e enfrentaram a realidade
como se de um sonho se tratasse. Ele passou a compreender as forças que
comandavam os sonhos, entendeu as suas fronteiras e conseguiu explicar muitas
realidades ocultas antes mesmo delas acontecerem. Confirmou a existência de
mensagens nos sonhos, e escreveu que em todos eles existem diferentes códigos
de decifração.
E se as palavras
lhe fugissem de vez?
Rui continua com
receio que elas lhe fujam de vez.
Como será a sua
vida se isso lhe vier a acontecer?
Daniel chegou na
altura certa, e o escritor reinventou a vontade de arriscar. Cada pessoa é como
uma história ao vento, uma liberdade, mas não basta olhar para elas, é preciso sabê-las
imaginar. Escrever é uma tarefa árdua e complicada. As frases são difíceis de
encontrar, e precisam de ser trabalhadas até acordarem nas folhas vazias de um qualquer
caderno.
O invisível
decidiu abraçar uma estranha cruzada, partiu ao encontro dos lugares mais
violentos dentro de cada uma das personagens da obra. A história estava a
desagregar-se, ao contrário das galáxias e dos sistemas planetários. A obra foi
atacada por um vírus destruidor que a lançou no caos e abrandou todas as
rotações conciliadoras que davam consistência ao enredo.
- Hoje vou ter
com Helen. Pensei imenso nela, e nunca deixei de a ver. Está a trabalhar na
sinfonia e pediu-me para passar lá por casa depois das oito.
Daniel está em
frente ao Rui que o pressente de imediato, quase ameaçador. Está muito magro,
com uma tez pálida e uma barba de duas semanas mal semeada no rosto. Os olhos do
invisível leem a alma do escritor.
- Tens de resolver
esse assunto de vez, Rui! Tens de deixar-te ir, não há volta a dar. Não esperes
até ao fim do dia para a visitar. És demasiado previsível, é sempre tão fácil
adivinhar o que vais fazer, e o que vais dizer. Surpreende-me! Surpreende-me
surpreendendo-te! Será que só consegues assumir riscos calculados? Que mal virá
ao mundo se fores de imediato bater à porta da pianista? Tens receio que ela
não te queira? Ainda não te conseguiste perdoar pela tua escolha naquele dia,
não é verdade? Não te perdoas por teres sido tão ridículo ao ponto de não teres
percebido o que estava implícito naquele convite que Helen te fez. Escolheste
terminar o teu romance no dia em que a irlandesa se preparava para te entregar,
em definitivo, o seu coração. Foi uma triste coincidência teres sentido aquele
fervilhar de criatividade logo nessa data. Terminaste a tua obra no mesmo
momento em que pensaste ter perdido o amor da tua vida. Devias saber melhor como
são exigentes as mulheres, Rui. E agora, deixa de te comportar como um imbecil!
Mas que merda! Por uma vez na vida, obedece sem reservas àquilo que o coração
te comanda!
Daniel está de regresso,
e regressou em força.
Rui ficou sem
respostas, e obedeceu.
São três horas e
um quarto.
Helen dá asas ao
seu talento prodigioso, e o som do piano espalha-se por todo o prédio. Rui só
irá bater à porta da irlandesa quando ela parar de tocar.
A melodia
consegue fazê-lo voar, é morna e refrescante como uma flor adocicada.
A pianista tem a
janela aberta, como é seu hábito, para que o Tejo e a luz ímpar de Lisboa a
inspirem.
A melodia
descreve a cidade, descreve as paisagens do sul da Ilha Esmeralda, o cheiro da
brisa do mar e todos os perfumes da baía de Summercove. O presente e o passado
encontram-se combinados naqueles sons encantadores, seduzem numa cadência celta
quase tão expressiva como os acordes que descrevem a saudade lusitana, o amor,
a solidão e a chama imensa da paixão. Helen toca nua e livre, a sua canção
nasce como uma aventura, nasce despida como o homem, e despida se levanta, e
cresce e alcança.
A pianista apercebe-se
que o ar está mudado e que as notas vibram com outra sonoridade. Alguém a
escuta do outro lado da porta.
Rui chegou mais
cedo, muito mais cedo.
Helen sabia que
isso podia acontecer. Rui acabou de escapar a um fim trágico, num outro tempo,
num sonho tão real como este onde eles habitam.
Era de prever.
Antes de terminar
de acariciar o piano, os seus acordes transportam-na até uma melodia de Cole
Porter que ela se apressa a adaptar para poder incluir na sua obra.
O universo parou quando
a pianista terminou de tocar.
Rui decide, finalmente,
bater à porta.
As suas obras, tal
como os sonhos, tal como o universo e o tempo, passarão a ser reais, tão reais como
as palavras destruídas, desorganizadas e desalinhadas do precioso escritor.
Sem comentários:
Enviar um comentário