Rui deseja terminar o seu romance. Trabalha
nele há mais de um ano e não consegue vislumbrar-lhe um fim.
A pianista parou de tocar. A sua obra está
praticamente concluída.
A felicidade é um sentimento perfeito, e
ela sente-se feliz.
O dia ilumina-se neste final de tarde e
devolve as cores prodigiosas à cidade.
Helen levanta-se, devagar. Antes de abrir a
porta decide olhar Lisboa pela janela. Quer recordá-la neste instante,
preservá-la, doce e colorida, para sempre. A cidade pertence-lhe. Os ritmos da
capital inspiraram-na e estão presentes na sua sinfonia. Hoje é o futuro, e o
presente também. O hoje tem cheiros e sabores, este hoje é bom, é a vida,
melodia irrepetível de um momento ímpar que Helen pretende preservar. Hoje é o
futuro, e o presente também. Lisboa é maravilhosa! Ainda bem que escolheu aqui
viver.
Rui relembra as palavras sábias de Daniel
enquanto aguarda:
- Não te preocupes com o estilo. Deixa
fluir o pensamento e as palavras pela folha branca de papel antes que as ideias
te faltem, antes que a força e a coragem te abandonem, antes que o universo
deixe de rodopiar. Depressa darás conta, como o poeta, do quão efémera é a
viagem. Deixa-te ir ao sabor do vento e da escrita, ao sabor da música e dos
bailados perpétuos das estrelas. A noite é boa conselheira se souberes
interpretar os movimentos dos astros, se conseguires decifrar esse compêndio
infinito. O que te trouxe até aqui foram as tuas palavras, as mesmas estranhas
palavras com que compões a tua obra, as mesmas que te transportaram até às
cidades mais caóticas, as mesmas que te fazem pensar. Tu és o somatório das
personagens que em ti habitam. Eu e tu somos iguais, somos feitos de sonhos e
de palavras, de ideias, ou então não somos.
O sol regressou, e com ele o calor e a
harmonia.
O sol aquece e ilumina, tudo se torna mais
claro e transparente.
Helen é clara, é bela, ousada e criativa. A
irlandesa sabe o que quer, e compõe de maneira sublime. Sem ela, Rui não
estaria aqui, continuaria perdido, ausente. Teria sido mais uma vítima do
holocausto.
- Viajei no tempo, Daniel sabia que isso
era possível, e ensinou-me. Hoje é o futuro, e o passado também. No presente
tenho de saber interpretar esta dualidade. A minha obra nunca estará concluída.
Nenhuma obra está concluída de vez. Existe uma névoa que mistura o passado e o
futuro, fazendo as obras recuar no tempo ou avançar para ajudarem na
interpretação do presente. Entender o presente através das obras, voltar atrás,
e recomeçar. É um processo doloroso pois não faz grande sentido, e dói porque
tem de fazer sentido, como o universo, que é infinito, e frio, e escuro, e
feroz, e cruel e violento. Parei quando Helen parou de tocar. Ela é o presente
e a sua melodia extraordinária está praticamente concluída. A minha obra está
longe de estar concluída, mas isso já não importa, nada mais importa, apenas
Helen. A sua música escuta-se por toda a parte, e as minhas cidades
desapareceram para bem longe daqui. Este é o lugar onde tudo acontece, pois é
aqui que me encontro e onde decido estar.
O escritor bate à porta.
Por instantes o mundo deixa de rodar, as
nações param de guerrear, os universos reajustam-se, outros fundem-se, outros
optam nada fazer.
Rui e Helen estão frente a frente no mesmo
quarto, sem palavras. Ele não precisa de falar, ela só necessita de escutar.
A pele é macia e quente, é doce.
O amor, dizem, é invisível, mas não é.
Salgado é este amor que lhes pertence.
Aqui não há palavras, como nas obras.
Procuram-se sílabas capazes de descrever os sons que ecoam pelas paredes deste
quarto.
Aqui acaba a obra e começa o amor.
Só numa obra existe um amor assim, um como
nunca acontece.
Ali, naquele prédio em frente ao seu,
naquele espaço visível da janela iluminada onde Helen dançava, dançam agora os
dois, poetas das palavras e dos sons.
Tudo o resto é uma mentira, é ficção, é
realidade fria e implacável por onde o tempo avança.
Naquele apartamento o tempo não é. Ali
acontece amor, tudo o resto é ilusão, é falsidade, é um desalinho indecifrável.
Lisboa já nem existe, todas as cidades
deixaram de existir, e a verdadeira obra acontece.
O amor torna tudo mais claro, luminoso,
transparente. Esse é o poder do amor, que também é doce e infinito, e é capaz de
fazer derreter o passado e o futuro. O presente é este amor que os une, que os
torna tão um do outro, que os ensina.
A obra fala de amor, conta a história de um
amor quase impossível de conceber. Como tentar adivinhar o tamanho do universo
ou redesenhar um sonho ou reescrever toda uma obra.
O amor é o único herói de todas as
histórias. Com ele, através dele, tudo se torna claro, luminoso e transparente.
- Amo-te, Helen, mas faltam-me palavras…
Ela sorri, as palavras não fazem falta.
A noite cai, lá fora, na cidade.
Rui e Helen estão juntos, no mesmo quarto,
sem palavras.
A bailarina do prédio em frente é a sua
amada. Rui quase a perdeu. Como foi possível ter escolhido a companhia das
palavras? As ondas do mar revolto ameaçaram apagar o fogo que deu alento à
razão do seu amor.
- Amor! Meu amor! A obra fala de amor, e
nada mais interessa. Melodia sem igual, perpetuada, entoa a tua preciosa, bela
sinfonia. Canta-a para sempre. Revejo o teu rosto, o teu corpo, o teu sorriso,
a tua pele branca, doce, macia, quente. A obra está perto de um fim, cada vez
mais perto do fim, mas nada disso interessa, amor! Amor! Meu amor, a obra é
sobre o amor, é sobre nós!
O escritor e a pianista desaparecem.
A cidade é engolida por um gigantesco
buraco negro que os protege. O que fica do outro lado dessa história só a eles
pertence.
- Amo-te, Helen! Amor! Meu amor, a obra é
sobre o amor, é sobre nós…
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