segunda-feira, 24 de março de 2014

COMO FUNCIONA O UNIVERSO?


- Nunca fugi dos meus problemas, mas a verdade é que deixei de acreditar naquilo que escrevo. É difícil manter uma qualidade constante quando se trata da nobre arte da escrita. Se o Daniel não me tivesse ajudado, tudo seria bem pior. Foi ele quem me acordou da letargia que tomava conta de mim, foi ele quem me ajudou a escutar. Os dias têm sido implacáveis. Disse ao Lopes que terminaria a obra durante o próximo mês, disse-lhe que escreveria um pouco, todos os dias. O livro está pronto pois todos os livros e todas as histórias já se encontram concluídas. A Pietá de Miguel Ângelo estava concluída, mas encontrava-se presa num imenso bloco de mármore até que o escultor a soltou. A obra existia na prodigiosa imaginação do grande mestre, que com ela tinha sonhado. Foi o artista quem a libertou, para todo o sempre, daquela fria prisão onde a estátua se encontrava. Essa etapa entre o antes e o depois é muito dolorosa, é complexa e tremendamente agitada. É solitária como a própria existência mas quando se faz luz, nada se lhe pode comparar. O final do processo criativo que dá origem à obra gera um misto de felicidade e de tristeza. Quando fica concluída, o artista alegra-se e rejubila, contudo fica vazio e sente-se abandonado. O Lopes já me perdoou tantos atrasos, bem merece a rápida conclusão do meu trabalho. Falta pouco, falta mesmo muito pouco. A obra está concluída mas este é ainda um tempo e um espaço em que lhe dou corpo e conteúdo, em que a moldo e faço crescer. Dentro em breve o Lopes estará de sorriso no rosto com o meu livro nas mãos.
- Rui, what are you doing? Close the window and come inside. I want to show you something.
A noite chegou à cidade. O invisível deixou a cidade.
Helen chama o escritor para lhe dizer o que ele já adivinhou.
- I have finished my piano concerto! Look, this is the last page of my work. I wrote it twice because I want to give it to you. I hope you like it, my love.
A irlandesa oferece-lhe a última página da sua nova sinfonia, sentada ao piano  tal como veio ao mundo. Desenhou as notas finais naquelas cinco linhas paralelas, intercaladas por iguais espaços em branco, abstratos signos, notas prodigiosas, uma ímpar melodia.
Com o escritor ao seu lado, dá início ao recital. Pela primeira vez a bela pianista irlandesa toca na íntegra, e de memória, a obra que acaba de finalizar.


Zé Paulo tem uma visão muito particular do universo e do seu funcionamento. Nada do que já leu ou estudou acerca do assunto o deixou minimamente satisfeito. Poucas luzes foram assim acrescentadas às suas incompreendidas teorias. O irmão Rogério é o único a quem ele as tentou explicar, com pouco ou nenhum sucesso.
É virtualmente impossível conseguir provar os seus complicados pensamentos acerca da matéria em causa. Zé Paulo conseguiu, por uma só vez, prender a atenção do irmão durante um quarto-de-hora de uma sua conferência, mas daí em diante o semblante de Rogério começou a dar mostras de um grande ceticismo, primeiro, e de um extremo cansaço, depois, até que atingiu o ponto de saturação.
- Para lá com isso, Zé Paulo! Deixei de te entender à dez minutos atrás! As tuas teorias são ultra complexas, para mim não fazem sentido nenhum. Passaste os últimos três anos tão obcecado na tentativa de encontrar significados para coisas mais próprias de filmes de ficção científica, que acabaste por te desligar do mundo real. Tu vives literalmente no mundo da lua, meu irmão! Para ti deixaram de existir épocas festivas, fins-de-semana, feriados, almoços ou jantares de família, e até as idas ao teatro! Logo tu que tanto gostavas de assistir a uma boa peça. Quando foi a última vez que saíste para ir ao teatro? Vá, diz-me lá qual foi a última peça a que assististe?
Zé Paulo parou de discursar. Teve pena não ter dado conta que aquele não era o momento acertado para lhe explicar as mais complexas teorias acerca do funcionamento do universo. Foi imprudente e descuidado pois não queria obter aquela reação do Rogério.
- Desculpa se causei este ruído no funcionamento dos nossos universos. Escutei mal o burburinho das estrelas, devia ter sido mais sensato. Queres um café ou preferes chá? Uma bebida quente faz milagres e ajuda a apaziguar a ira.
Rogério sorriu. O irmão é quase sempre assim, imprevisível, e é também por isso que o adora mais do que a qualquer outra pessoa neste mundo
- Pode ser um café, mano, bem forte como de costume.

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