- Pretendo escrever o que falta desta
história. - diz o escritor a carregar nas teclas da velha máquina como nunca
antes o fizera.
Agora os deuses dar-lhe-ão as frases que
faltam para concluir a obra, e tudo voltará a ser como sempre foi. Passado e
presente, trabalhados em doses ímpares, escutam as conversas de todas as vozes
e ajudam a construir mais esta história. Nada é igual, o corpo anda ausente e a
alma fustigada. As chamas da discórdia estão de regresso, aniquilam as memórias,
os pesos das memórias.
- Escrever, escrever, não pares de escrever!
- dizia Daniel, e assim ele foi fazendo, sempre que lhe era possível e as
cidades não o perturbavam.
Tão complicado e contudo tão simples. Bastava
estar sentado à mesa, as teclas à sua frente, ou a caneta na mão, ecrã, papel,
folhas brancas, escrevinhadas ao fim de alguns instantes, a história a crescer,
a não crescer.
- Dizem que todas as histórias têm um princípio,
um meio e um fim. Dizem, e depois, e se for mentira, e se não se construírem
exatamente assim?
Daniel gostava que Rui lhe contasse o fim
do romance que ajudou a construir. Daniel quer saber se as personagens que o escritor
foi construindo acreditam em finais felizes. O invisível não acreditou num
final feliz, nem num princípio ou um meio feliz. Daniel não acreditou na vida
que lhe calhou em sorte até que, corajoso, saltou para o vazio que o abraçou.
As vozes estão a contar este pedaço da obra
ao escritor que hoje resolveu escrever diretamente na máquina. Hoje não houve
tempo para preparar a caneta e o caderno. Ele sentou-se em frente ao computador
a olhar para as teclas negras de letras brancas, a escutar as vozes que lhe
ditam as palavras. Como sempre, Rui acredita que a história não é sua, nenhuma
das histórias é verdadeiramente sua, mas isso não se atreve a dizer a
ninguém. Talvez se atreva, um destes dias, mas não hoje, ainda não hoje.
Está cansado.
A obra avança e não avança, ou avança
devagar.
Ele carrega nas teclas com tal velocidade
que nem se apercebe do que está a escrever. E se tivesse sido sempre assim?
Para que perdeu ele tanto tempo a escrever as palavras em papel? Depois tem
sempre de as passar, de as guardar no computador para não se perderem. Parece
um pianista louco a tocar as teclas de um estranho piano que debita letras
escuras, intensas ou escuras, mais ou menos luminosas, e estranhas. Ao fim e ao
cabo, é este o processo que o leva até àquele estranho instante em que tudo
começa a fazer algum sentido, ou a não fazer.
- Nada disto faz sentido, nunca fez!
A música da sua amada é a única coisa que
faz verdadeiro sentido nesta obra.
O resto é acessório.
Os sons delicados compostos pela pianista
são tão sublimes, a beleza da sua obra é tanta que nada mais importa.
A luz de Lisboa é engolida pelo gigantesco buraco negro que atravessa a
capital. Da beira das estradas saltam formas imperfeitas, palavras negras
esculpidas no asfalto dançam à sua frente um estranhíssimo bailado.
Histórias feitas de sal e de vazios pairam como nuvens por sobre os rostos
expressivos das personagens. São tantas as dúvidas como as certezas, e
transportam idênticas ilusões. São elas que os mantêm aquecidos como centenas
de milhares de estrelas colapsadas.
Rui pretende concluir o romance e não mais escrever palavras sem sentido.
Rui observa a cidade da janela e tudo se encontra no lugar devido. Tudo
menos o tempo que agora é outro. Lá fora, do lado de lá da avenida, está o seu
prédio. É dali que Daniel o observa nesta cidade que está tão diferente.
Rui escuta as vozes do mar na melodia de Helen, o mesmo mar que lhe
devolveu as palavras e lhe entregou estas memórias numa bandeja. Escuta as
vozes e tenta decifrar o final do enredo. Agora sabe porque escreveu.
Necessitava de encontrar o seu destino.
A obra da irlandesa devolveu-lhe a felicidade. O corpo de Helen convida-o,
é uma nascente de palavras estimadas e corajosas. O princípio e o meio da
história acontecem num só dia, na manhã de um mesmo dia. E quantos séculos
existem numa hora desse dia? Somos mais de sete mil milhões de almas e uma hora
na história de cada um de nós equivale a duzentos e noventa e um milhões
seiscentos e sessenta e sete mil dias. São setecentos e noventa e nove mil anos
de histórias, sete mil novecentos e noventa séculos no somatório de uma única
hora da vida de todos nós. Quantos livros seriam necessários para contar as
histórias existentes nessa hora?
Rui escuta as vozes do mar na melodia de Helen, os sons sobem e descem e
acrescentam-se à história. O escritor sabe que está aqui, é tudo o que sabe, e
se está aqui, escreve. Escreve porque aqui é o lugar onde se entretém a escutar
as vozes que lhe trazem as histórias.
Esta seria apenas mais uma página vazia, agora é poema, é obra desconexa, é
um sonho roubado, escondido nas entranhas de uma memória ainda por descobrir.
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