quinta-feira, 10 de outubro de 2013

DITADURAS




- Repara como, de um momento para o outro, todos nós passámos a dispensáveis. Foi com rapidez que cresceu esta nova realidade onde o abjeto desrespeito pela vida do próximo se instalou, está bem visível nas ruas, vem noticiado todos os dias em todos os jornais e noticiários, até o inalamos ao respirar. Contudo, esta evidência só nos parece incomodar quando tropeçamos e caímos no abismo que procuramos evitar. Por respeito à tua capacidade criativa, comunico-te que já começava a ficar cansado da minha invisibilidade, dos silêncios que cresciam à minha volta, de tanto vazio. Se eu desfrutasse de uma fração da tua imaginação, estaria sempre a escrever, e as folhas brancas não me chegariam para acomodar as histórias, viagens e pensamentos. Estava tão farto, tão cansado, que saltei… e aqui vim parar. Acabei de ler pela quarta vez o início da tua obra. Deve ser um bom sinal quanto à qualidade dos teus textos, não achas? Também se pode dever ao simples facto de eu ser um parvo com o seu quê de masoquista, e adorar repetir a leitura de textos desinteressantes. Mas nada mais te posso dizer acerca da teu romance, apetece-me ficar aqui quieto sem fazer nada, só a descansar e a observar a tua falta de inspiração. Talvez fosse mais acertado chamar-lhe irregularidade criadora, ou falhas endémicas no desenvolvimento da narrativa… o pior mesmo foi o Lopes se ter cansado dos teus atrasos. Ai, Ai! As ditaduras dos prazos, as diabólicas ditaduras dos prazos estabelecidos pelas editoras que apenas tentam alimentar o apetite voraz dos seus leitores. Eu acredito naquilo que tu fazes, na forma como trabalhas, cumprindo e seguindo os teus tempos, sem cederes a tentações. Assim é que está bem. Ao procederes de acordo com o que te comandam as vozes da inspiração, sofres o terrível tormento dessa montanha-russa criativa, mas és fiel aos princípios e à pureza da tua criação. Se quiseres, eu calo-me, fecho já a boca. Hoje acordei assim, cheiinho de vontade de conversar.
O invisível tem um timing tão errado como errada é a vontade de matar que assola o escritor ainda entorpecido pelo sono. Rui tinha adormecido no sofá com a caneta na mão, desinspirado, e o amigo improvável acordou-o com este discurso. Trouxe-lhe uma nova cidade, uma nova capital, menos futurista mas igualmente decadente e sombria.
O invisível observa a urbe da janela, onde uma noite agradável convida ao passeio.
- Rui, vem comigo, tenho uma coisa que gostaria de te mostrar.
O Tejo está poluído, ou será que este não é o Tejo? Que novo rio será este que banha a cidade sem cor? O escritor não tem forças para o contrariar. Levanta-se, estremunhado, arruma a caneta numa estojo metalizado e o cahier no topo da prateleira do pequeno móvel que decora a entrada do apartamento. Os dois saem em direção às avenidas da metrópole. O escritor avança de chinelos pois a sua indolência elegeu esta forma de caminhar.
- Que horas são? A que dia e a que ano pertence esta cidade? Que dia é hoje… podes dizer-me?
- Posso, mas não o farei. – responde o amigo improvável continuando a caminhar.
Vozes arrebatadas escutam-se por todo o lado, falam uma língua estrangeira indecifrável que ora se assemelha ao grego, ora ao húngaro, ora ao francês arcaico, ora ao latim. Os que gritam acompanham os brados com palmas, e os seus clamores sobem aos céus. São homens, mulheres e crianças a gritar bem alto, comunicam uma dor ímpar nesta cidade à qual parecem não pertencer. Uma voz forte e rouca sobressai das demais, dando voz de comando com energia militar. Outras, igualmente fortes e roucas e militarizadas se fazem ouvir, num rugido sem igual.
- Sigam as filas sem as abandonar, sigam as instruções, os sinais estão por todo o lado. Não coloquem um único pé fora do caminho a seguir.
Os histéricos bramidos das mulheres abrandam enquanto as lágrimas são vertidas. Nunca as vidas de tantos foram escrutinadas com uma perícia e uma sofreguidão tão avassaladoramente decadente.
- Homens para um lado, mulheres e crianças para o outro!! – bradam os militares. – DEPRESSA!!! - Homens para um lado, mulheres e crianças para o outro. - Männer auf der einen Seite, Frauen und Kinder auf der anderen. SCHNELL!
A morte cheira-se por toda a parte, e tem sido também por isso que lhe tem sido mais difícil escrever. A alienação é o fruto podre que vem crescendo e que Rui vê a aumentar. Está a ficar maior a cada dia que passa, é uma necrose, uma víscera seca, quebradiça, é uma coisa bem ruim…
- Foda-se para isto tudo! Que valente merda esta! A obra está a desfazer-se, os sinais estão por todo o lado, mas os inteligentes falam como se isto não estivesse a acontecer.
- Não é nada de grave! – bradam os militares e os inteligentes. – Não é nada de grave, nada que nós não possamos corrigir! - Es ist nichts Ernstes, nichts, was wir nicht lösen können!

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