quarta-feira, 2 de outubro de 2013

AS COISAS SÃO APENAS AQUILO QUE AS COISAS SÃO


Rui não consegue regressar às palavras. Nenhuma das suas técnicas tem dado resultado. O escritor morreu para a escrita, como o provam o seu esboço de romance, as novas personagens e os enredos, que mais não são que uma inequívoca demonstração do seu eclipse. A força de onde lhe provinha o verbo e que lhe alimentava as histórias, acabou. A obra morreu sem ter nascido.
- Há quanto tempo não te fazes escutar, ó invisível? Sempre que falaste, escutei-te com atenção, e respeitei as tuas opiniões. Entendes, agora, que as forças que aniquilaram a minha criatividade são muito poderosas. Eu nada consigo contra elas. As histórias sempre foram a minha companhia, a minha família renascia com as novas palavras de cada novo livro que de mim era vindimado. Agora estou tão seco e negro como as videiras destroçadas pelas pragas. Num outro tempo, não muito distante, já tu terias argumentado e berrado comigo, terias feito aparecer uma outra cidade na janela da sala, terias tentado agitar a minha melancolia. Onde estás tu, afinal, que não te fazes escutar?
- Estou aqui, no mesmo lugar onde sempre estive. Nem me mexi. Tu é que te esqueceste de mim e deixaste de me escutar.

Quando Sofia recuperou os sentidos, reparou que o conteúdo da sua mala se encontrava espalhado, à sua volta, no meio dos juncais.
A culpa do acidente foi da chuva miudinha que caía sem dar tréguas, é o que todos lhe dirão.
A culpa do acidente foi do mau estado do piso daquela estrada secundária por onde ninguém deveria circular, é o que todos lhe dirão.
A culpa do acidente foi desta vida de merda, das putas das amantes que o cabrão do marido nunca se escusou de arranjar.
A culpa do acidente é apenas de Sofia, que fraca, tão fraca e tão medrosa, nem soube resistir à tentação, ao pecado, à malícia extrema de se deixar despistar. Talvez assim, finalmente, ela se transfigurasse ou, melhor ainda, desaparecesse de vez
O corpo está bem, nada lhe dói, apenas a alma.
O corpo não reage, ainda é cedo, só a alma lhe dói, pois nunca descansa.
O corpo está bem, mas a alma está rasgada, despedaçada, encharcada como o rosto e o cabelo, como toda a roupa que tem vestida.
O corpo está bem, não reage, mas está bem. O que raio lhe haveria de ter passado pela cabeça numa altura destas.
Sofia encontra o batom perdido ali bem perto de si. Foi um dos muitos objetos que a carteira semeou. Senta-se, passa o batom vermelho pelos lábios com a mão tremente.
O carro está imobilizado não muito longe dali, do outro lado da estrada, com a frente quase desfeita. Ela não compreende como foi possível ter passado incólume ao acidente. O universo resolveu ficar do seu lado, e ela terá de se esforçar para respeitar a importante decisão.
E o Tiago? Que culpa é que tem o menino para que tudo isto lhe esteja a acontecer?
A chuva miudinha ensopa o corpo dorido e derrotado de Sofia. Ela volta a passar o batom nos lábios com a mão mais segura. Estão impecavelmente contornados, brilhantes, intensos, apetecíveis e carentes.

- Vês, tal como eu te disse, estive sempre aqui. Considerei ser mais importante permanecer em silêncio, atento mas em silêncio.
- O miúdo acaba de perceber que te atiraste da ponte abaixo. O que achas que pode pensar um rapazinho tão novo de uma situação como esta?
- Não sei. Diz-me tu! E o que ficará a pensar o jovem Tiago quando lhe disserem que a mãe teve um acidente brutal no mesmo dia em que os pais discutiram e ameaçaram separar-se? O universo é um local violento, e as coisas são apenas aquilo que são, nada mais do que isso. As coisas, todas as coisas, são apenas aquilo que as coisas são.

Sem comentários:

Enviar um comentário