Rui não consegue regressar às palavras. Nenhuma
das suas técnicas tem dado resultado. O escritor morreu para a escrita, como o
provam o seu esboço de romance, as novas personagens e os enredos, que mais não
são que uma inequívoca demonstração do seu eclipse. A força de onde lhe
provinha o verbo e que lhe alimentava as histórias, acabou. A obra morreu sem
ter nascido.
- Há quanto tempo não te fazes escutar, ó
invisível? Sempre que falaste, escutei-te com atenção, e respeitei as tuas
opiniões. Entendes, agora, que as forças que aniquilaram a minha criatividade
são muito poderosas. Eu nada consigo contra elas. As histórias sempre foram a
minha companhia, a minha família renascia com as novas palavras de cada novo
livro que de mim era vindimado. Agora estou tão seco e negro como as videiras
destroçadas pelas pragas. Num outro tempo, não muito distante, já tu terias
argumentado e berrado comigo, terias feito aparecer uma outra cidade na janela
da sala, terias tentado agitar a minha melancolia. Onde estás tu, afinal, que
não te fazes escutar?
- Estou aqui, no mesmo lugar onde sempre
estive. Nem me mexi. Tu é que te esqueceste de mim e deixaste de me escutar.
Quando Sofia recuperou os sentidos,
reparou que o conteúdo da sua mala se encontrava espalhado, à sua volta, no
meio dos juncais.
A culpa do acidente foi da chuva miudinha
que caía sem dar tréguas, é o que todos lhe dirão.
A culpa do acidente foi do mau estado do
piso daquela estrada secundária por onde ninguém deveria circular, é o que
todos lhe dirão.
A culpa do acidente foi desta vida de
merda, das putas das amantes que o cabrão do marido nunca se escusou de
arranjar.
A culpa do acidente é apenas de Sofia, que
fraca, tão fraca e tão medrosa, nem soube resistir à tentação, ao pecado, à
malícia extrema de se deixar despistar. Talvez assim, finalmente, ela se transfigurasse
ou, melhor ainda, desaparecesse de vez
O corpo está bem, nada lhe dói, apenas a
alma.
O corpo não reage, ainda é cedo, só a alma
lhe dói, pois nunca descansa.
O corpo está bem, mas a alma está rasgada,
despedaçada, encharcada como o rosto e o cabelo, como toda a roupa que tem
vestida.
O corpo está bem, não reage, mas está bem.
O que raio lhe haveria de ter passado pela cabeça numa altura destas.
Sofia encontra o batom perdido ali bem
perto de si. Foi um dos muitos objetos que a carteira semeou. Senta-se, passa o
batom vermelho pelos lábios com a mão tremente.
O carro está imobilizado não muito longe dali,
do outro lado da estrada, com a frente quase desfeita. Ela não compreende como foi
possível ter passado incólume ao acidente. O universo resolveu ficar do seu lado,
e ela terá de se esforçar para respeitar a importante decisão.
E o Tiago? Que culpa é que tem o menino
para que tudo isto lhe esteja a acontecer?
A chuva miudinha ensopa o corpo dorido e derrotado
de Sofia. Ela volta a passar o batom nos lábios com a mão mais segura. Estão impecavelmente
contornados, brilhantes, intensos, apetecíveis e carentes.
- Vês, tal como eu te disse, estive sempre
aqui. Considerei ser mais importante permanecer em silêncio, atento mas em silêncio.
- O miúdo acaba de perceber que te atiraste
da ponte abaixo. O que achas que pode pensar um rapazinho tão novo de uma situação
como esta?
- Não sei. Diz-me tu! E o que ficará a pensar
o jovem Tiago quando lhe disserem que a mãe teve um acidente brutal no mesmo dia
em que os pais discutiram e ameaçaram separar-se? O universo é um local violento,
e as coisas são apenas aquilo que são, nada mais do que isso. As coisas, todas as
coisas, são apenas aquilo que as coisas são.
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