quinta-feira, 3 de outubro de 2013

COMO É BELA A COR DOS TEUS CABELOS



O espesso fumo negro eleva-se no ar enquanto os bombeiros tentam criar um perímetro de segurança com a ajuda do corpo de intervenção da polícia. Ninguém sabe, ao certo, se existem mais bombas espalhadas nas imediações ou se este terá sido apenas um ato isolado. Os muitos mirones que foram chegando são afastados do local pelos agentes da autoridade.
Carla permanece abrigada no conforto dos lençóis, desejando que o dia passe depressa, que se faça noite, uma noite silenciosa e bem escura para onde ela possa deslizar. Agora que o Armando deixou de ser, deixou de estar, talvez os dias possam recuperar o brilho e a alegria que tinham antes de ela o conhecer. As marcas na alma serão mais difíceis de cicatrizar, bem mais difíceis do que todas as outras mazelas que o rafeiro lhe semeou no corpo e no rosto. O sádico, uma besta selvagem que a seduziu, a encantou e enganou. Ela, sem defesas, facilmente se deixou ludibriar.
Foi fácil, tão fácil, mais fácil não podia ser. Armando bem cedo a domesticou para dela tudo fazer e retirar.
Carla ficou prisioneira na sua própria casa, deixou de ver os pais, os amigos, deixou quase de ver e de sentir, e sentiu vergonha da sua fraqueza, da sua ingenuidade, da sua genuína infantilidade. Até a noite, sua companheira de menina, se transformou num medo incomensurável que a paralisava de terror. Mal o bruto chegava, o universo deixava de existir, tal era o poder e o tamanho grotesco das suas mãos.
- Menina Carla, menina Carla! Vá lá, responda, olhe que tem aqui à porta dois senhores da judiciária que lhe querem fazer umas perguntinhas – insiste a dona Carminda enquanto faz de anfitriã aos agentes. O indicador da mão direita está dormente de tanto insistir na campainha. A senhora serve aos homens uma descrição do carácter e dos modos do falecido.
- Um homem assim não deixa saudades neste mundo. Se não tivesse medo do sujeito, sim, medo, pois o fulano impunha muito respeito, eu já teria telefonado à polícia para fazer queixa – confessa a senhora. – O indivíduo fazia uma algazarra tremenda, gritava palavrões, muito alto, e ameaçava a coitada da menina Carla. Os berros escutavam-se no prédio todo. Olhe que só um surdo não dava conta do que nesta casa se passava. Pobre rapariga, o que ela não terá sofrido com o brutamontes do homem, uma torre de quase dois metros num corpo de estivador… é como lhes digo, uma tristeza, coitada da moça. Esse Armando nunca me enganou, raio da criatura, e ninguém no prédio gostava de o ver por cá. Desde que por aqui apareceu, coisas estranhas começaram a acontecer, e gente muito esquisita que ele para cá chegou a trazer, mas agora… Deus me perdoe, o estafermo teve aquilo que merecia.

Isilda volta a observar o bonito sorriso de metal da pianista. Recorda, de novo, aqueles sábados distantes em que se entregava, de corpo e alma, ao seu amado Anacleto. Os dois chegaram a pensar partir para Moçambique, casarem por lá, ou não casarem, terem cinco filhos, uma quinta junto ao mar, ou uma casa, ter uma vida. Pensaram fugir para África, para a Beira, para longe dos olhares de reprovação das beatas da paróquia, das más línguas do povo, da mão cruel e poderosa do senhor bispo que bem cedo resolveu acabar com a paixão.
Foram os cabelos ruivos da rapariga irlandesa que lhe acenderam as memórias desses dias, pois Anacleto tinha os seus da mesma cor.

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