quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A HORA DE DORMIR


As conversas deixam transparecer todos os medos e pouca esperança. Respira-se com outra intensidade pois cada instante é vivido como se fosse o último. O escritor agradece a lição ao amigo invisível. As viagens efectuadas às cidades que habitam na sua janela têm-no enriquecido. Rui foi transformado por essas visitas e pelas experiências vividas em cada urbe.
- As cidades do holocausto, as várias cidades onde a humanidade se pulverizou, jamais irão desaparecer. Trouxe-te até aqui pois a janela da tua sala mostrou as vistas desta triste história que muitos gostariam de apagar de todas as memórias. O tempo parece ser um inimigo da razão, pois envolve-a com teias finas mas poderosas. Teias fortemente emaranhadas, poeirentas e sombrias. Nada do que aqui se passa, do que aqui se passou, pode ser esquecido.
Milhares de judeus formam grandes filas indianas e perfilam-se na grande praça central, obedecendo às ordens dos militares alemães. Mais um comboio acaba de chegar e os prisioneiros obedecem a tudo o que lhes é comunicado sem abrir a boca, sem resistir, sem quase ousar respirar. As lágrimas descem, silenciosas, pelos rostos, ao contrário da chuva gelada que cai sonora dos céus e os encharca sem piedade.
Quatro corpos são arrastados para fora de uma das carruagens, já sem vida, já sem cor. Os homens escolhidos para a empreitada estão tão magros e tão ausentes que a lentidão com que a realizam acaba de assinar-lhes sentença de morte. Caíram com o rosto virado para o chão enlameado, abatidos pela Luger do Obersturmbannführer que os vigiava. Nem assim as lágrimas dos que assistem se tornaram menos silenciosas. As vozes de comando escutam-se por todo o recinto e as filas avançam, ordenadas, até que a mais que provável morte os venha reclamar.
- Aqui tudo está errado! O facto de tudo estar a preto-e-branco é aquilo que menos choca nesta cidade. A cor, a única cor visível é o vermelho que escorre para o chão, o mesmo vermelho que empapa os parcos agasalhos, que pinta os rostos e adorna as feridas e que coagula depressa com a ajuda da temperatura negativa que já se faz sentir.
A chuva dá lugar à primeira neve do Outono que começa agora a cair. Passa meia hora e o nevão ganha força suficiente para que a neve pegue. Aos mais cansados e derrotados o frio traz a morte embrulhada no sono. A companheira visita-os de madrugada e acabam por não acordar.
- Vais dormir aqui, terás de pernoitar nestas casernas do desalento. Obedece a todas as ordens, cumpre fielmente todas as rotinas, não penses, não reajas, não sufoques. Disseram-me para aqui te trazer e para aqui te abandonar. Perderás a cor, ficarás preto-e-branco como estes camaradas de infortúnio. Os dias e as noites que aqui passares irão moldar-te. É evidente que não serás o mesmo após esta experiência, isso, claro, se fores capaz de sair com vida desta cidade.
Rui sabe que assim tem de acontecer. O sol desapareceu, os perfumes são outros, a realidade aqui parece ficção. Falam-se tantas línguas como em Babel, falam-se e escutam-se palavras em hebraico, em checo, palavras neerlandesas, búlgaras, italianas, romenas, espanholas, húngaras, francesas, russas, gregas, albanesas e portuguesas. Agora, neste comboio, chegaram também vozes portuguesas. São registadas nos livros, catalogadas para sempre. Num futuro distante, menos inquieto, menos negro, dilacerado e desumanizado, recordar-se-á tudo o que hoje aqui aconteceu.
- A tua obra vai ter de ficar parada por mais algum tempo. Quando quiseres, assim que te sentires apto a regressar, chama por mim, mas nunca antes de terem passado sete dias e sete noites. Essa é a cláusula que não podes quebrar, mas após esse período chama-me a qualquer instante para regressarmos à Lisboa que conhecemos.
Olhos negros, muito negros e profundos, todos os olhos negros e cansados e profundos viram-se para o escritor arrependido.
Esta noite está a ser gelada e incolor. Sussurros, lamentos, tímidas lágrimas vão dando sinais das muitas nações que aqui se encontram. Todos esperam que a morte os venha buscar de madrugada.
As fortes luzes dos holofotes do campo de concentração pintam sombras negras nas paredes de madeira da camarata 72. Entram por entre as frinchas e as janelas despidas. Juntam-se às sirenes, à escuridão da noite branca, da noite cada vez mais fria e branca e longa. Esta é a noite mais longa de todas as noites que o escritor viveu.
Agora chegou a hora de dormir.
Da janela da camarata Rui avista uma cidade doente, fria, branca, cinzenta, cruel e tão real como reais são os vermelhos que os seus companheiros de infortúnio trazem pintado nos frágeis farrapos que os cobrem.
- Faltam sete dias e sete noites para que eu possa regressar! – pensa o escritor numa imensa aflição.
Agora chegou a hora de dormir!

 

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