terça-feira, 8 de outubro de 2013

É DIFÍCIL DECIFRAR O FIRMAMENTO



Zé Paulo sempre foi uma pessoa diferente, e soube-o desde pequeno. O menino observava o céu e as estrelas através do fundo de copos e de garrafas coloridas. A mãe quase nunca lhe falava, e ele cresceu preocupado com essa falta de atenção. Virou-se na direção do firmamento, das estrelas, e na direção do senhor de chapéu de feltro que de tudo um pouco lhe ensinava, e a quem gostava de fazer perguntas. Esse senhor tinha o mau hábito de fumar, bebia muitas cervejas, gostava de jogar às cartas, mas era bastante generoso. Tinha sido um grande amigo do pai, quando os dois eram novos. Festejavam os aniversários em conjunto, tiravam fotos com máquinas muito antigas, até que lhes aconteceu o mesmo que acontece a tantas boas amizades – apaixonaram-se os dois pela mesma mulher. O mais justo decidiu fazer meia-volta, e escondeu a tristeza de coração partido.
- Por mais que o queiramos evitar, rapaz, alguém tem sempre de partir. E na maior parte das vezes em que isso sucede, a esperança é de que seja para encontrar algo melhor…
Zé Paulo não o compreendia, mas adorava o seu tom de voz. Sabia que aquele homem de quem ele gostava tinha tiradas misteriosas, e não se importava de, por vezes, não entender lá muito bem o que ele dizia.
- Estamos todos aqui só de passagem. Escuta o que te digo rapaz, de passagem e nada mais. Vejo nos teus olhos que tens um grande talento. Por vezes até te assustas com esse teu dom, mas não te preocupes. É igual ao de muitos de nós. Nisso não estás sozinho. Verás o sol, estudarás as estrelas, respeitarás as árvores e saberás o tempo exato que demoram a crescer. O teu pai é médico, mas não sabe medir a intensidade com que a dor sobe pelo corpo dos pacientes, nem sabe que técnicas utilizar para a controlar. Tu e eu sabemos escutar a voz do universo, e sabemos que não engana ninguém, apenas aqueles que não o conseguem decifrar.
Naquele dia tudo mudou. Pela primeira vez as palavras desse homem fizeram todo o sentido. A mãe chamou-o por duas vezes, de longe, para ele regressar. Zé Paulo respeitou a ordem. Tinha onze anos e a mãe já carregava um olhar vazio e cansado. À noite, enquanto dormia, os cometas trouxeram-lhe a novidade durante uma discussão violenta dos pais. No sonho, o amigo apareceu-lhe sorridente e a fumar, com o imprescindível chapéu na cabeça. O menino passou a saber que o universo é um lugar violento. Saiu de casa sem fazer barulho, e foi à procura do senhor antes que algo de muito mau lhe pudesse acontecer. A camioneta chegava bem cedo à paragem da vila, bem antes do sol acordar. Zé Paulo correu como um louco para se despedir do amigo, mas ele já tinha partido quando lá chegou. Chorou! Chorou muito sem entender o que é que o pai ali estava a fazer. Ao regressar a casa a mãe estava à sua espera. O pai chegou pouco depois, e encontrou-os junto à mesa da cozinha preparados para discutir.
- Sim mãe, é verdade, o senhor Peres é muito simpático! Só tu e o pai é que parecem não gostar dele. Ele é o meu único amigo adulto, e eu gostava muito dele.
Sepúlveda e Deolinda passaram o resto da alvorada a falar do homem e na influência que ele acabou por ter nas ideias do menino, coisa que eles tentaram evitar, mas sem sucesso.
Zé Paulo refugiou-se cada vez mais na prática do seu passatempo preferido – observar as estrelas através de todos os tipos de vidros que conseguia encontrar.
A mãe, uma noite, entrou no seu quarto e decidiu contar-lhe a história do senhor Peres, de como ele e o pai tinham sido grandes amigos quando eram novos, ainda mais novos do que ele, amigos inseparáveis. Depois, abraçou-se ao filho e entendeu que tinha feito a escolha mais sensata naquele dia distante, mas não a que o coração lhe pedia. O Peres era delicado e formoso. Deolinda mantém escondida uma fotografia dele onde o Sepúlveda jamais a encontrará.
- O senhor Peres ensinou-me a ler os pensamentos, mãe, ensinou-me a olhar as estrelas com olhos de escutar e não de olhar. Porque é que o pai fez tanta questão que ele se fosse embora da vila, mãe, porquê? Sabes? Diz-me porquê?
Deolinda agradeceu ao universo ele não ter permitido que o filho lhe lesse os pensamentos naquele instante.

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