quinta-feira, 17 de outubro de 2013

AS VANTAGENS DE VOAR




O invisível colocou a alma da razão no epicentro da ignomínia. O escritor derrete-se, como as palavras que não encontra, neste lugar onde valsa um Satanás embriagado.
- Quiseste mostrar-me que a esperança no homem acabou aqui nestes guetos, nestas valas comuns para onde são atirados milhões de judeus. Quiseste mostrar-me que o homem é o próprio demónio enlouquecido, e que nada ficará igual após o holocausto. De que somos construídos se tudo o que aqui se passa foi possível? O que é o meu sofrimento quando comparado com os passos destes homens, destas mulheres e crianças? As minhas mãos terão de ser capazes de descrever este inferno, estes lugares onde a humana raça se desvenerou. Aqui fica gravado a sangue e horror, nos próprios genes, a história da infame carnificina que jamais poderemos deixar repetir. Nesta cidade onde habitam tão negras e sombrias evidências, acabou a esperança do homem. Aqui se mancha um lençol gigantesco, tecido de pecados. Aqui é somente isto que se vê, e esta é a realidade…

- Já deves ter mais ideias para a obra. Tens-lhe dedicado tanto tempo, que decidi aguardar pelo resultado dessa tua caminhada, mesmo sabendo que está mais atrasada do que inicialmente tinhas previsto. Conhecemo-nos há quase quinze anos Rui, não são propriamente dois dias. A tua crise criativa não será motivo para estragarmos a nossa amizade. Sei, porque te conheço, que continuarás em busca das palavras para a tua obra. És incapaz de abandonar um texto, uma ideia, um caminho novo. A falta de inspiração é temporária e não te vergará meu caro Rui, tu não és homem para acatar esse tipo de derrotas. Liga-me quando achares bem, detesto deixar mensagens no voice-mail. Calculo que prefiras não me ver neste momento, e foi só por isso que decidi fazê-lo. Sabes bem o quanto te estimo e admiro. Um grande abraço amigo Rui, continuação de um ótimo trabalho.
Rui usa as palavras como nenhum outro escritor, mas sofre tormentos para conseguir fazer nascer cada página da sua obra. Sofre para que as palavras não nasçam fúteis, estéreis, desinteressantes. O Lopes não tinha percebido o quão alterado se encontrava o escritor por não ser capaz de cumprir os prazos estipulados pela editora, e foi sincero como um punhal nas suas considerações. Rui teve uma reação inesperada após ouvir as opiniões do agente literário.

- Por instantes deixei de ter medo de voar. Acredita, foi verdade. Houve um momento em que deixei de ter medo de estar lá em cima a observar as nuvens que mais não eram que carneiros obedientes a pastar num prado azul.
Filipa e Joel acham graça à confissão de Augusto. É pouco habitual ele dar assim conta dos pensamentos. A sua natureza é a de um homem mais reservado.
- O medo de voar era mais o respeito que eu sentia pela nossa pequenez. Somos tão insignificantes quando nos encontramos perdidos no céu a abusar da sua paciência. Tinha medo de morrer se a máquina se avariasse lá por cima, mas se tal acontecesse, a morte seria rápida, bem rápida e indolor. Deixou de fazer qualquer sentido eu ter receio de voar. Foi isso que pensei e, assim como assim, a vida é mesmo uma merda…
- Ó pai, então?! Que conversa vem a ser esta? Por amor de Deus! E o Joel, o que acha que o seu neto vai ficar a pensar? Francamente, pai, olhe só para o que lhe havia de dar.
- O Joel é um homem feito, Filipa, e as palavras do velho pouco ou nada o incomodam.
Augusto acha que teria sido mais vantajoso se o pássaro de metal se tivesse desintegrado no momento em que o rebanho de nuvens resolveu passar perto da janela.
- Sempre vos digo que lá no alto não demoramos muito a chegar a um outro lado, e são duas as vantagens de voar, podemos morrer sem dor e safamo-nos do trânsito caótico. Olhem só como nesta estrada nenhum pastor de nuvens nos pode socorrer.
A segunda circular continua bloqueada nos dois sentidos e o tráfego só começa a avançar nos acessos à ponte 25 de Abril.
- O avô tem toda a razão, olhe que nos dava muito jeito podermos agora sobrevoar o Tejo até Almada …
 

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