O
invisível colocou a alma da razão no epicentro da ignomínia. O escritor
derrete-se, como as palavras que não encontra, neste lugar onde valsa
um Satanás embriagado.
- Quiseste mostrar-me que a esperança no
homem acabou aqui nestes guetos, nestas valas comuns para onde são atirados
milhões de judeus. Quiseste mostrar-me que o homem é o próprio demónio enlouquecido,
e que nada ficará igual após o holocausto. De que somos construídos se tudo o
que aqui se passa foi possível? O que é o meu sofrimento quando comparado com
os passos destes homens, destas mulheres e crianças? As minhas mãos terão de
ser capazes de descrever este inferno, estes lugares onde a humana raça se
desvenerou. Aqui fica gravado a sangue e horror, nos próprios genes, a história
da infame carnificina que jamais poderemos deixar repetir. Nesta cidade onde
habitam tão negras e sombrias evidências, acabou a esperança do homem. Aqui se
mancha um lençol gigantesco, tecido de pecados. Aqui é somente isto que se vê, e
esta é a realidade…
- Já deves ter mais ideias para a obra. Tens-lhe
dedicado tanto tempo, que decidi aguardar pelo resultado dessa tua caminhada,
mesmo sabendo que está mais atrasada do que inicialmente tinhas previsto.
Conhecemo-nos há quase quinze anos Rui, não são propriamente dois dias. A tua
crise criativa não será motivo para estragarmos a nossa amizade. Sei, porque te
conheço, que continuarás em busca das palavras para a tua obra. És incapaz de
abandonar um texto, uma ideia, um caminho novo. A falta de inspiração é
temporária e não te vergará meu caro Rui, tu não és homem para acatar esse tipo
de derrotas. Liga-me quando achares bem, detesto deixar mensagens no voice-mail.
Calculo que prefiras não me ver neste momento, e foi só por isso que decidi
fazê-lo. Sabes bem o quanto te estimo e admiro. Um grande abraço amigo Rui,
continuação de um ótimo trabalho.
Rui usa as palavras como nenhum outro
escritor, mas sofre tormentos para conseguir fazer nascer cada página da sua
obra. Sofre para que as palavras não nasçam fúteis, estéreis, desinteressantes.
O Lopes não tinha percebido o quão alterado se encontrava o escritor por não
ser capaz de cumprir os prazos estipulados pela editora, e foi sincero como um punhal
nas suas considerações. Rui teve uma reação inesperada após ouvir as opiniões do
agente literário.
- Por instantes deixei de ter medo de
voar. Acredita, foi verdade. Houve um momento em que deixei de ter medo de
estar lá em cima a observar as nuvens que mais não eram que carneiros
obedientes a pastar num prado azul.
Filipa e Joel acham graça à confissão de
Augusto. É pouco habitual ele dar assim conta dos pensamentos. A sua natureza é
a de um homem mais reservado.
- O medo de voar era mais o respeito que eu
sentia pela nossa pequenez. Somos tão insignificantes quando nos encontramos
perdidos no céu a abusar da sua paciência. Tinha medo de morrer se a máquina se
avariasse lá por cima, mas se tal acontecesse, a morte seria rápida, bem rápida
e indolor. Deixou de fazer qualquer sentido eu ter receio de voar. Foi isso que
pensei e, assim como assim, a vida é mesmo uma merda…
- Ó pai, então?! Que conversa vem a ser
esta? Por amor de Deus! E o Joel, o que acha que o seu neto vai ficar a pensar?
Francamente, pai, olhe só para o que lhe havia de dar.
- O Joel é um homem feito, Filipa, e as
palavras do velho pouco ou nada o incomodam.
Augusto acha que teria sido mais
vantajoso se o pássaro de metal se tivesse desintegrado no momento em que o
rebanho de nuvens resolveu passar perto da janela.
- Sempre vos digo que lá no alto não
demoramos muito a chegar a um outro lado, e são duas as vantagens de voar, podemos
morrer sem dor e safamo-nos do trânsito caótico. Olhem só como nesta estrada
nenhum pastor de nuvens nos pode socorrer.
A segunda circular continua bloqueada nos
dois sentidos e o tráfego só começa a avançar nos acessos à ponte 25 de Abril.
- O avô tem toda a razão, olhe que nos dava
muito jeito podermos agora sobrevoar o Tejo até Almada …
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