quinta-feira, 26 de setembro de 2013

DE QUE COR SÃO OS OLHOS DAS GAIVOTAS?



Jorge fecha os olhos por respeito à altura a que as águas do Tejo se encontram. O homem saltou, disso o miúdo já não tem dúvidas.

O rapazinho surpreendeu a mãe várias vezes a falar na morte. Ela diz, e repete, que já cá não anda a fazer nada. A última noite em que isso aconteceu, Luísa deu conta da presença do filho e agarrou-se a ele, como se desse abraço dependesse a existência do Mundo. O tempo parou enquanto os dois assim permaneceram. Vasco descobriu-os abraçados no escuro, e não se atreveu a facultar pernas ao tempo.

As gaivotas atravessam a ponte, em voo rasante. Uma delas está atenta a tudo o que Jorge vai fazendo, preferindo esta tarefa ao voo acrobático das companheiras. O pássaro avança com delicadeza em direção ao rapaz.

- O homem saltou! Agora já não há nada a fazer. - pensa a gaivota, sem conseguir comunicar.

Jorge está incomodado com a sua descoberta.

- As coisas são o que são, rapaz, e nem sempre encontramos as respostas para as nossas dúvidas. Chorar faz bem. Nós, gaivotas, não choramos. Talvez seja porque sabemos voar, talvez seja porque nada nos falte, talvez seja porque o choro é um atributo da espécie humana, talvez...

A ave aproxima-se tanto do rapaz, que ele acaba por olhar para ela, num reflexo. A íris amarela e uma grande pupila negra fitam-no, brilhantes, preparadas para discursar.


Quatro mulheres conversam, em voz alta, sentadas ao redor de uma mesa do café. Duas a duas colocam a conversa em dia, numa algazarra incompreensível que só elas dominam. Descrevem filmes descartáveis, histórias de vida que não as delas. Procuram aquecer-se nesse jogo de palavras fúteis. Uma delas lança para a fogueira do discurso factos da sua própria vida, quebrando as regras para monopolizar o evento e sair vitoriosa da contenda. Esta será a única vitória do seu dia. E que mais pode ela fazer se já não sente prazer em nada? Sente-se invisível como o vento que abana os juncais perto da berma da estrada por onde conduz. Os dias são sempre iguais, de um vazio avassalador, e sempre tão pesados. A vontade em deixar o automóvel seguir pelos juncais foi mais forte do que ela. Os cabelos louros atravessaram a vidraça e o corpo pequeno seguiu o mesmo destino. A manhã nasceu cinzenta, e nem a vitória na conversa do pequeno almoço trouxe luz à sua madrugada. Sofia levou o Tiago à escola, e tinha acabado de sair do café quando o carro começou a ziguezaguear na estrada até resvalar para o fosso que o recebeu.

A gaivota observa o menino Jorge. Gostaria de saber falar com ele para lhe dizer que não se preocupasse, pois tudo irá correr bem, como sempre acontece. Meninos como ele são cada vez mais raros, e o universo precisa deles para conseguir manter-se estável e sobreviver.

Zé Paulo avista um bando de gaivotas por cima do tabuleiro da ponte. Não é comum elas esvoaçarem por ali, pois o trânsito caótico quase sempre as mantém afastadas. Os cães ladram na rua, mais alto e com um frenesim maior do que é normal. O dia cinzento está anormalmente quente para esta altura do ano. A estas variáveis da equação, Zé Paulo decide acrescentar-lhes a noite passada em branco. Ao iniciar a resolução deste novo desafio, um arrepio gelado percorre-o de alto a baixo e ele vislumbra um conjunto de imagens desfocadas, a preto e branco, como se alguém tivesse sintonizado um velho aparelho de televisão.

O universo é um local violento, ao contrário do que o coração benévolo da gaivota gostaria de ter dito ao pequeno Jorge, só para o tranquilizar.

Zé Paulo está visivelmente alterado, o universo ficou alterado, e cheira a mofo, a bafio, a coisa velha, gasta e cansada. O cheiro invade a sala, toma conta da cidade, das memórias, e transforma-se em medo e em revolta. Sabores doces e salgados invadem-lhe o palato. O acidente de Sofia passou a fazer parte das suas recordações.

A gaivota despede-se do rapazinho, levanta voo e junta-se às companheiras. O passeio pela ponte está perto do seu final. Jorge guarda o chapéu da seleção dentro da mochila, como recordação da sua primeira caminhada pela grande ponte de metal. Ao longe o Tejo entra pelo mar, e a água e o céu tornam-se um só.

Sofia foi projetada pelo vidro da frente e voou, já desmaiada, como uma gaivota livre, de olhos meigos e coração benevolente, até que aterrou num colchão feito de juncais.

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