O escritor adormeceu. A cabeça ficou
deitada em cima da sua mais recente leitura, e assim permaneceu por um longo
período. O livro almofada é desconfortável, mas o cansaço era tanto, a
frustração tamanha, que isso não pareceu incomodá-lo. Agora necessita recuperar
todos os pedaços da história, sem esquecer nenhum.
A memória é pródiga a pregar partidas:
tudo ajudará a encontrar, ou tudo se perderá para todo o sempre.
Quem são as personagens desta Obra que
tanto o atormentam? São pessoas comuns, com vidas comuns, com vidas
extraordinárias. Helen desapareceu para parte incerta, como os mortos que
povoaram as primeiras páginas da história. O silêncio tomou conta do salão, do
quarto, de todo o apartamento, tomou conta da grande capital que se avista da
janela da sala onde escreve. A cidade está tão silenciosa como as fronteiras
mais recônditas do espaço sideral. Ali nasceu uma nova cidade, idêntica à
Lisboa que Rui conhece, mas tão diferente em dimensão e arquitetura. A noite
tomou conta da cidade, que paira no ar, por sobre o rio, as colinas e o oceano,
como uma gigantesca nave alienígena. As luzes brilham lá no alto, mas em nada
se assemelham às que conhecemos. O ambiente é misterioso, futurista, metálico,
translúcido, orgânico, bem distinto da Lisboa de agora que o escritor tão bem
conhece. Ele nunca mais foi o mesmo desde que o Lopes teve aquela reação ao seu
novo romance. Que se lixassem os prazos e todas as pretensiosas e castradoras
imposições que o agente, de novo, lhe comunicou.
- Quero lá saber se está fragmentada,
incoerente, ambígua, surreal, paradoxal, sem chama, sem ritmo, sem rumo, sem
uma linha sensata que a torne inteligível. Eu escuto, eu escrevo! Não desejo esse
mal a quem me doa tantas palavras, a quem me transmite tantas dádivas
invisíveis! Que justiça lhes faria se as moldasse de outra forma? Se alguém
delas vier a ter o devido conhecimento, saberá que eu não as transfigurei.
Os segredos voam, pelo menos assim o
deseja Zé Paulo, que aguarda sinais dessa evidência. As moscam entram pela
janela e invadem a sala de jantar, mas nem pensar em fechá-la. O universo
explica-se nela, e assim, aberta, ela deve permanecer, quer chova, quer faça
sol, quer sopre um vento forte ou uma brisa ligeira, de noite ou de dia. O
canal de comunicação não pode ser fechado. Hoje as moscas vieram fazer-lhe
companhia, bailam ao seu redor, pousam nos seus braços, no pescoço e na testa,
até resolverem de novo bailar. Estes movimentos cadenciados do universo são o
resultado de uma simples equação que obedece a uma constante metódica. O
equilíbrio, aparentemente aleatório do sistema que tudo comanda, pode ser
observado no ziguezaguear errático destes insetos, nos pensamentos abstratos de
Zé Paulo, nos efeitos provocados pela brisa invisível, no sabor da fruta ou do
peixe acabado de grelhar, no peso dos silêncios e das memórias que procuram
ajudar a este seu diagnóstico.
Perante a folha em branco, o escritor
aguarda. Não sabe mais o que fazer aos fragmentos das pequenas histórias já
criados.
As palavras, cada vez mais raras, acabaram
de o lançar para uma cidade futurista, uma Lisboa inimaginável, como jamais
pensou visitar. Rui quer sair à rua e gritar, mas esta nova cidade possui uma
atmosfera tão densa e tão pesada, que intimida o escritor.
- Estiveste muito tempo adormecido. A tua
condição mudou, tudo mudou. Os sonhos tornaram-se ainda mais negros e
insensatos. Esta nova cidade é um reflexo dessa tua inconstância. Há tubarões
famintos a habitar nas águas deste Tejo, por debaixo das construções colossais
que levitam por cima das colinas, do rio e do oceano. Não conseguirás provar o
teu valor se não regressares depressa ao teu trabalho. Preocupas-te demasiado
com o facto de não seres tu a comandar o rumo dos acontecimentos nesta tua
Obra, como acontece com a maioria dos escritores. Repara que nesta cidade não
existem telhados nem ligações físicas entre as várias estruturas voadoras que
pairam por sobre as ruínas da velha cidade. Trouxe-te até aqui pois foi neste
lugar que eu acordei depois de me ter lançado da ponte abaixo. Não faço a mais
pequena ideia de quanto tempo estive aqui adormecido, até que as vozes me
acordaram e indicaram qual o rumo a seguir e o que fazer. Quero que sintas a
mesma estranheza que eu senti nesse acordar, a mesma dificuldade em encarar, de
novo, a realidade, em regressar aos mesmos ciclos e rotinas, até te surgirem as
palavras. Queres morrer? Daquilo que me foi dado a conhecer, a morte trouxe-me
até aqui. Foi assim que comigo aconteceu. O meu corpo estava deitado, a pairar
no meio de uma neblina morna, enquanto girava. Eu tinha os olhos fechados mas
apercebi-me que os habitantes desta cidade me observavam lá do alto.
- Porque me contas essas coisas? Não tenho
interesse em nada do que me dizes, e tão pouco me interessa visitar esta Lisboa
futurista. Está muito escuro lá fora. O melhor que podias fazer, se é que
consegues, é transportar-nos de volta para a minha cidade no tempo presente.
O silêncio incomoda Rui muito mais do que
as palavras que não lhe chegam, do que os ruídos metálicos que escapam desta
cidade. Incomoda mais do que a escuridão, do que os cheiros nauseabundos
provocados pelos gases provenientes dos óleos e dos combustíveis que são
queimados e lançados na atmosfera pelas fábricas voadoras e que tornam o ar
irrespirável.
- Invisível, tira-me daqui, por favor! Não
desejo visitar esta cidade onde dizes ter acordado depois do teu salto.
Devolve-me a cidade onde Helen vive e compõe a sua obra. Preciso falar com ela,
preciso de regressar para falar com a pianista, antes que seja tarde demais. És
capaz de mudar a paisagem que vejo da minha janela, eu sei que és tu quem se
encarrega de alterar as paisagens que vejo da janela de minha sala, por isso
agradeço que atendas o meu pedido e procedas conforme te peço.
O silêncio incomoda-o mais do que a falta
de palavras, ou do que os ruídos metálicos, repetitivos, que escapam da cidade futurista.
O silêncio incomoda-o mais do que o vazio da noite escura, poluída e decadente.
- Invisível…, por favor! Devolve-me a cidade
onde eu e Helen nos conhecemos. Preciso de falar com ela antes que seja tarde demais.
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