A vida tem mente própria.
As pessoas costumavam interessar-se com o que
acontecia no mundo, mas agora, tudo está desajustado. Talvez o universo ainda
não tenha aprendido a andar de bicicleta e tenha dado um valente trambolhão. É
imprudente pedalar a esta velocidade no inverno, com esta chuva e este gelo.
O universo sofreu alguns reveses, desmaiou,
desapareceu por algum tempo. Só assim se justifica o que se tem andado a
passar. Ansiedade, euforia, agitação, escuta vozes sem nenhum motivo, apenas
porque estas se lembram de aparecer, tal como nascem buracos negros que dão à
luz milhões de estrelas, ou as engolem, a elas e ao tempo, e depois param, e
voltam a saltar, e de novo a parar.
O universo deve estar escondido do outro lado da
parede à espera que alguém escreva uma história acerca dele, e explique como
funciona.
Ninguém o conhece, verdadeiramente.
- Isto deve ser um sonho! - diziam-lhe as vozes. – Tu
estás bem, mas és um homeless. –
voltavam a repetir.
Todos têm direito a uma história, porque será que
ninguém escreve histórias acerca de um sem-abrigo?
A vida tem mente própria.
Daniel queria ser músico. Os seus olhos negros
fixavam-se na pauta até lhe doerem as pernas e os dedos de tanto tocar. Tocava
sempre, em todos os lugares, todos os dias, e queria mudar o mundo com a sua
música. Como é hábito neste universo violento, um gigantesco buraco negro
preparava-se para o engolir, e ele a lutar como um leão, a fingir tocar as
notas no seu corpo.
Daniel limpava as sujidades dos túneis, apanhava e
limpava as beatas do chão, limpava as ruas, a cidade, limpava o mundo, o
universo, e depois tocava. Fechava os olhos e tocava. A música ecoava pelos
túneis por onde os carros passavam sem nunca parar. Ali estava ele com a sua
música. Para onde ia, Daniel, quando fechava os olhos e tocava? O universo
parava, as pombas levantavam voo, o caos era o mesmo. As notas ecoavam pelas
galerias por onde o trânsito fluía, e o universo retomava o seu passo. Confirmava,
a cada dia, que era um local sujo e violento, caótico, insano e assustador.
Daniel, enquanto tocava, gostava de olhar para os
olhos dos outros. Andava estafado, e o cérebro cansado apenas tinha um lugar
iluminado, o lugar onde as vozes o confortavam, o lugar certo. Dizia sempre
estar à espera da pessoa que lhe iria curar a doença.
Era muito raro ele aparecer mais do que duas vezes
no mesmo local, mas a sua música encontrava toda a gente, invadia todos os
espaços, mesmo aquele que se encontrava atrás da parede onde o cosmos gostava
de se esconder. Ele alcançava-o através de uma particular janela do seu
apartamento, e nem sempre entendia o que por lá se passava. Era assustador, e
as suas vozes nem sempre eram amigas.
Daniel fugiu e ninguém soube para onde. Ninguém o
viu, só a irmã o procurou.
As ruas, à noite, são tão assustadoras como os
buracos negros que controlam os universos. Tossem, gritam, fumam, padecem de
doenças malditas, agridem e até podem matar. Daniel foi músico até morrer,
pensou bem e decidiu que já não havia mais nada para fazer.
- Tu também pensas nas obras de outros escritores,
como eu pensava em outros músicos, Rui? – pergunta-lhe Daniel, o amigo
improvável.
- Não, nunca assim como tu. A rua não era lugar para
ti, a rua não é lugar para ninguém.
O universo, por vezes, torna-se menos violento e
embala-nos com a beleza das suas partituras. Daniel deixava-se levar por ele
quando assim acontecia, e via todas as cores que existem no arco-íris
combinadas de maneiras impossíveis e inimagináveis.
- Para onde vais? Para onde vais tu? – pergunta o
escritor.
- Gostava de ir para um lugar melhor. Agora sei que
tenho comigo tudo o que necessito, e tudo o que posso transportar para o lugar
para onde vou. Tu tens de trabalhar, tens o teu trabalho, a tua profissão, e eu
só te tenho estado a atrapalhar. Tens a tua casa, este apartamento onde
escreves. Ainda continuas zangado? Onde está a tua família? O meu pai era um
homem grande, um gigante de mão grandes. Eu tenho umas mãos pequenas,
minúsculas quando comparadas com a do senhor meu pai. Servem para tocar os meus
instrumentos. Tu foste o meu pai durante estes dias, amigo escritor, tu foste
um pai de mãos pequenas e normais, de mãos criativas e cheirosas. Estive sempre
por aqui enquanto descansavas. Eu ouço vozes e tu também as escutas. Eu
protegi-te, tu choraste e eu contigo chorei. Consegues ver tudo deste teu
apartamento, é muito asseado, é confortável e simpático.
Daniel tinha receio de viver sozinho. Uma vez
decidiu ver um pequeno apartamento só com salinha e kitchenette. Não se
conseguiu ver a morar ali, a morrer ali, não precisava daquilo para nada, só
dos barulhos da cidade e dos seus túneis. Só precisava da música, da sua música
que tocava sem parar.
- Rui, achas que vou conseguir vir a ser uma boa
pessoa? Acabei por não encontrar a pessoa que me podia ajudar, e nunca falei
tanto com alguém como contigo. O que quererá isto dizer? Que somos amigos? É,
será isso? Tu és meu amigo, Rui? Onde estás? Onde estás tu agora que
regressaste desse pesadelo, desse inferno para onde te deixaste arrastar? Achas
que a minha vida dava um livro? Tu, que tanto escreves, achas que a minha vida
dava um livro?
Daniel nunca esteve tão lúcido como agora.
Um dia, alguém parou para o escutar enquanto afinava
o instrumento. As suas vozes visitaram-no, e ele não conseguiu conter as
lágrimas. Regressou ao passado onde as mesmas vozes lhe gritaram aquelas coisas
estranhas e assustadoras, berravam que todos o queriam envenenar e vê-lo morto,
e ele fugiu como quando fugiu de casa pela primeira vez. Fugiu de casa da irmã
que tanto o amava quando ainda era um jovem adolescente. A rua passou a ser a
sua casa, a rua fria, barulhenta, violenta e caótica.
Daniel escondia-se nos lugares mais escuros da
cidade que desde muito cedo passou a ser o seu apartamento.
- Porque decidiste vir ter comigo, porquê eu e não
um outro escritor qualquer? Porque me vieste ajudar?
- Talvez porque gostas de boa música, talvez porque
te preocupas e ouves vozes como eu, talvez porque te sentes perdido. A verdade
é que estava cansado de ser Daniel. E tu, nunca te cansas de ser quem és?
Daniel, é esse o meu nome, esse era o meu nome, eu não era ninguém.
Rui tem de sair.
O seu erro foi ter ficado fechado em casa tempo
demais.
Precisa de recomeçar a pensar na sua vida, telefonar
a Helen, falar com o Lopes.
Daniel só pode ter enlouquecido. A sua vida dever
ter sido um verdadeiro inferno e ele sem ninguém a quem se poder queixar.
Rui não conseguiu evitar a morte do amigo
improvável. Quando o viu a passear pela ponte naquela manhã, ainda não o
conhecia e jamais imaginou que ele se fosse atirar da ponte abaixo. O escritor fez
como todos os outros, ignorou-o, ali estava um homem invisível e ele fez de conta
que não o avistou.
- Os amigos, por vezes, fazem e dizem coisas horríveis
uns aos outros, e chateiam-se. Para mim, é uma honra poder ser teu amigo, é bom
saber isso. Tu ainda vais a tempo de ter uma vida boa. Todos nós necessitamos de
amigos para conseguir sobreviver, e eu gosto de dançar contigo ao som da tua melodia. Nunca te esqueças de continuar a prestar atenção a essas tuas vozes.
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