- Por vezes questiono-me porque
escrevo. Não fiques a pensar que me é fácil encontrar o tempo correto para
descobrir as palavras que me levam às histórias. Ser-me-ia mais benéfico não estar
sujeito aos prazos que a editora me impõe. A pressão tem estado presente nos
últimos tempos e tem causado muita perturbação ao meu processo criativo como
uma incómoda espectadora invisível. É como te digo, Lopes, ser-me-ia bem mais
fácil escrever só por escrever, como acontecia no início, em que o fazia por
sentir necessidade, porque o corpo e a alma me pediam. O primeiro encontro com
as personagens é uma experiência única e inexplicável. Vindas do nada, começam
a ser, a fazer, a respirar, a viajar, mas é como se eu sempre as tivesse
conhecido. Todas tão diferentes, com histórias tão distintas, mas sou incapaz
de me imaginar sem a sua presença. Sinto-me o elemento unificador dessas
diferenças, elas são eu, e eu pertenço-lhes. Só agora, passados estes anos dedicados
à escrita, o comecei verdadeiramente a assimilar. Vês, o que é que eu te disse?
Como seria possível eu estar aqui sem as
minhas histórias? Essa é que é essa, companheiro Lopes. Se eu não me tivesse
aventurado pelas artes da escrita, provavelmente, não teria sobrevivido. É
dessa necessidade primária que eu sinto mais falta. Os primeiros romances
ajudaram-me a enfrentar as minhas querelas interiores, e as personagens que
neles nasceram ajudaram-me a resistir, e eu compreendi. Mantiveram-me vivo!
Cada palavra era um sopro, um respirar, e com elas me fui aguentando, dia após
dia. De repente, fiquei com uma vontade imensa de descobrir o que teriam para me
contar. Enquanto dormia, invadiam-me os sonhos, visitavam-me e explicavam-me
como era o mundo onde viviam. Ao acordar, recordava esses poemas e
acrescentava-os aos enredos. Jamais imaginei escrever para vender, e tu és
testemunha disso, Lopes, sabes melhor do que ninguém o tempo que foi preciso
para me convenceres a lançar a minha primeira obra. E qual de nós suspeitaria
que tantos as admirassem, como acabou por acontecer? Não se devem apressar as
palavras, elas não obedecem aos caprichos do tempo. O contrato acabou por
transformar o meu prazer, esta minha maneira de respirar, em algo penoso e
frustrante. Fiquei sem ar, estive quase dois meses sem conseguir escrever uma
única palavra, lembras-te Lopes, dois meses quase inteirinhos. É obra!
Consegues imaginar alguém que sobreviva tanto tempo sem respirar? Era o que eu
sentia ao não escrever. Mas as palavras teimavam em não acontecer, e eu a apagar-me
com elas, a afastar-me, a desaparecer deste universo, sempre cada dia mais um
pouco, ao seu alucinado ritmo de expansão. Retirei-me para conseguir
reequilibrar os ritmos de vida, reaprender a olhar e a escutar para melhor
sentir. Fazes ideia de como se consegue equilibrar um ser humano ao atrever-se
a dar os primeiros passos? Essa alegria da descoberta é-me proporcionada sempre
que decifro uma nova palavra, e como a aprecio! Enquanto elas me continuarem a
contar as histórias que eu vou registando, sentir-me-ei maravilhado como
imagino só ser possível quando experimentamos caminhar pela primeira vez.
Escrever é um ato natural, caso contrário não acontece, e se não acontecer, eu
não existo! Entendes, Lopes? Porra, estou a ser um verdadeiro chato, e tu estás
para aí calado sem me dizer nada, caramba. Vou mas é calar-me antes que as
febras arrefeçam.
O Lopes sorri, está visivelmente
agradado com a dissertação do amigo escritor. Que sentido teria a vida sem
poetas? Os outros, aqueles que se limitam a caminhar, necessitam de almas assim
para lhes amenizarem o peso das rotinas e deceções. Que possam sempre continuar
a existir poetas capazes de transformar as palavras em sonhos, em histórias e pensamentos.
- Longa vida, Rui, uma longa e criativa
vida é tudo aquilo que eu te desejo, homem! Do fundo do coração. Fazes falta a muita
gente, companheiro, tu e as tuas palavras são bem mais importantes do que aquilo
que possas imaginar.
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