quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

DOIS ESTRANHOS, DOIS IRMÃOS



Os universos são entidades orgânicas dotadas de vontade própria que se movem a velocidades indescritíveis. São cruéis, instáveis, imensos.
Zé Paulo imagina este universo como uma gigantesca bolha de sabão colorida, e idealiza um outro com a configuração sofisticada daquela nuvem lá no céu. Os dois pertencem-lhe, são uma criação sua de existência imaterial.
Todas as vidas são universos indescritíveis em movimento, ora afastando-se, ora encontrando-se. Acabam transformadas em outras sofisticadas bolhas de sabão coloridas com estranhos formatos. O universo é um local cruel e violento, disso não resta a mais pequena dúvida. Zé Paulo tem conseguido manter-se alheio às vozes que lhe trazem conversas fúteis e desinteressantes. É incompreensível como se gasta tanto tempo a discutir assuntos tão inúteis, absurdos e perversos. Será que alguém se preocupa, entregues que estão as pessoas a ingratas tarefas rotineiras?
Sofia já deve ter saído do hospital. Provavelmente foi buscar o Tiago à escola. Andava, quase adormecida, junto às linhas intemporais que delimitavam as fronteiras do imenso buraco negro responsável pela harmonia do seu universo. As dúvidas derreteram-se, desapareceram, e regressaram transformadas em respostas que logo foram desagregadas em luz e em poemas. Sofia mudou, tem de estar mudada. Esta manhã violenta alterou o centro de gravidade do seu planeta. O tempo de ontem desapareceu, está longe, onde está, agora, o tempo de ontem? Onde se esconderam as suas estrelas? Quem lhe dera que a deixassem em paz, nem que fosse por uns instantes, por uma vez na vida.
Palavras diferentes, palavras iguais que significam coisas diferentes, palavras fúteis, foram todas engolidas pelo imenso buraco negro. Escorregaram pelas paredes geladas do imenso vórtice que apenas cumpre a sua função. Ali se misturam o fogo e o gelo da existência com a ausência do tempo que depois são agitados por forças terríficas. Essas são as energias que transformam realidade em ilusão. Sonho, dúvidas, cansaços, e os desapontamentos de todas as histórias, tudo acaba engolido pelo buraco negro que os desliga, desorganiza e desintegra. Saem inteiros pelo outro lado da fogueira, às costas uns dos outros, e crescem, medonhos, como as labaredas do mais dantesco dos infernos.
As ideias surgem assim, estranhas, da cor de ferrugem que lhes vem agarrada ao corpo. As ideias surgem assim, muito detalhadas em forma e conteúdo, rodeadas pela luz branca e intensa do hipnótico buraco negro que a todos enfeitiça. Ele é a porta de passagem para o outro lado do universo, e esta é uma altura tão boa como qualquer outra para o atravessar. O mundo exterior não existe, apenas esse outro que se esconde no centro daquela confluência luminosa para onde espaço, tempo, luz e matéria são sugados.
Zé Paulo não acredita nas histórias que dão conta do que ali se passa. Os que o tentam fazer julgam discorrer acerca dos acontecimentos que lá ocorrem, mas na realidade, ninguém ainda comprovou possuir tamanha sapiência. Ali é o reino das sombras. Os buracos negros são lugares silenciosos onde as almas tentam encontrar um novo rumo.
Rogério está desanimado. Tornou-se quase impossível ter uma conversa séria com o irmão, e isso entristece-o. Este estranho mundo das ciências onde ele se refugia é confuso demais. Zé Paulo ganhou esta obsessão e quase deixou de comunicar com os amigos, com a família e conhecidos. Passou a viajar até às perigosas vizinhanças dessas entidades cósmicas que tanto o fascinam. Deixou de dormir às horas convencionais, tem a casa sempre desarrumada e o sofá passou a ser a sua cama. Quer descobrir os segredos dos universos, como ele próprio afirma, e construiu esta caverna invisível e misteriosa, escondida de tudo e de todos, para onde se deixa transportar.
- Eu não durmo, não preciso, eu limito-me a sonhar. – respondeu Zé Paulo, para desespero do irmão.
- Mas que porra! Que tolice a tua teres optado por esta estranha forma de vida. – contrapôs o Rogério, algo irritado.
- Acreditas em fantasmas? Não, tu não és pessoa para acreditar em fantasmas. Talvez os anjos da guarda façam mais o teu género. Claro! Como foi possível eu não ter dado conta disso. Tu acreditas em anjos da guarda, mas não em fantasmas. Verdade, vejo isso nos teus olhos, mas tu és demasiado brioso para confirmares a minha suspeita. Deixa, não faz mal, o teu olhar diz-me tudo o que preciso saber sobre o assunto.
Zé Paulo alimentava este tema de conversa nos jantares em casa do irmão. Rogério e Madalena fazem questão em convidá-lo, com regularidade, mas as conversas repetitivas começam a gerar algum incómodo. Os sobrinhos gémeos acham que o tio é muito engraçado, mas um bocadinho esquisito. Riem-se de alguns dos detalhes bizarros daquelas histórias acerca das estrelas, das galáxias e dos famosos buracos negros de que ele tanto gosta.
- O processo repete-se quase sempre da mesma maneira. Imaginem um espelho com pequenos orifícios quase impossíveis de detetar. Um espelho com forma de nuvem, mas tão fino e flexível como uma bola de sabão a bailar ao som da mais bela melodia. Esses furos luminosos são os poderosos buracos negros que mantêm constante as rotações das galáxias por eles controladas. Não existe um dentro e um fora, apenas o mesmo caos e escuridão do início dos tempos. A nossa morada é frágil, tão frágil como essa bolha de sabão onde coabitam complexos sistemas cosmológicos. Tu lembras-te, Rogério? Recordas-te daquela noite em que as mãos do nosso pai não tremeram? Como raio foi possível o velho Sepúlveda ter falhado um alvo tão fácil?
- Com franqueza, mano, quantas vezes já te pedi para não mencionares esse assunto à frente dos miúdos?
A cabeça de Zé Paulo só lhe diz que os dias, aqui em baixo, são longos como as noites no espaço onde reina a matéria negra. Cada vez mais as suas divagações levam-no para esse distante infinito.
Foi Madalena quem teve a brilhante ideia de o convidar para passar o Natal com eles. Rogério olhou-a, meio surpreendido, e depois voltou-se para o Zé Paulo, sorridente.
- Sim, mas que bela ideia, Madalena. Então, o que dizes a passares o Natal em nossa companhia? Há quanto tempo não o festejamos juntos, mano?
Zé Paulo também sorriu, mais por voltar a ver aquela expressão ao irmão Rogério, igualzinha à que ele costumava fazer quando o Alexandre não o deixava jogar à bola por ainda ser muito pequeno.
- O futuro chegou depressa. Como foi possível termos chegado até aqui com esta rapidez? Disseram-me que o nosso pai falhou de propósito. Eu cá acho que alguém invisível deve ter repousado uma cabeça amiga no seu ombro e lhe terá afagado as costas para o refrear.
Noites.
Noites com o tamanho de dias e de noites.
Noites inteiras gastas na procura das respostas.
- Verdade? É verdade, tio? Vai mesmo passar o Natal connosco este ano? Vai ser fixe, vamos mostrar-lhe os nossos carros telecomandados e podemos jogar o monopólio.
Faltavam cerca de duas semanas e meia, e este ano ia ser diferente. O Natal é sempre o Natal. As noites de Zé Paulo têm sido bem longas e solitárias.
- De acordo, Madalena. Terei todo o gosto em passar este Natal convosco.
- Que bom, Zé Paulo, fico contente! Ainda bem que resolveste aceitar o convite. Estou muito feliz!

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