quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

COMBOIO PARA AUSCHWITZ




A cidade cinzenta acorda por entre sombras e contraluzes. As portas das camaratas abrem-se e os prisioneiros são obrigados a sair. Os reflexos dos corpos na neve derretida espelham medo, angústia, desilusão. O ar gelado da manhã recebe-os e eles não levantam os olhos do chão pois isso é muito arriscado. Como foi possível a vida ter-lhes pregado semelhante partida?
A camarata 72 ficou vazia de irmãos.
Os soldados nazis conduzem a mudança enquanto disparam para o ar tiros intimidatórios. Também eles se mostram tensos e nervosos, e vão gritando que ninguém viverá para contar esta história.
Dois prisioneiros arriscam a fuga e logo são abatidos. Segue-se um silêncio insuportável. O sangue mancha a neve derretida, passeia nos olhares que se cruzam e interrogam.
A transferência dos prisoneiros continua com os militares cada vez mais atentos a novas tentativas de fuga. Um dos sargentos que disparou não consegue evitar um histérico ataque de riso. Outro resolve dar mais dois tiros nos corpos já cadáveres.
As sirenes do grande complexo tocam sem piedade.
Eles apenas tinham de permanecer na fila…

O comandante aparece, atraído pelos disparos, no exato momento em que outro prisioneiro começa a correr na direção da camarata 72. O oficial aponta a Luger e dispara, ferindo-o com gravidade. Após os tiros, aproxima-se do homem que se encontra caído, de barriga para baixo, e vira-lhe o rosto com a bota para melhor o ver morrer. Acende um cigarro e fuma-o enquanto a vida do prisioneiro se apaga.


- Agora a tua memória está bem fresca. – exclama o invisível. – Grava estas cenas para jamais as esqueceres. O coração dos homens é cruel e violento, tu tens de o explicar na tua obra. O coração dos homens transforma-se ao sentir-se poderoso. O poder é um veneno que cega e destrói, que chega de dentro e de cima e vira tudo do avesso. Deixamos de ser quem somos e perdemo-nos como numa tempestade de areia. Ficamos imprudentes e obcecados ao manipular essa arma imaterial. O comboio para onde vos estão a levar tem como destino Auschwitz. Tu acompanharás os teus camaradas até meio da viagem. Quando a noite cair, saltarás da carruagem em andamento, e tudo acontecerá como se de um sonho se tratasse. Ser-te-á mais fácil fazê-lo se pensares assim. Os soldados alemães são muito poderosos e a única maneira de te protegeres é preservares a memória de todos. Tens de sobreviver para contar esta história na tua obra. Mais cedo ou mais tarde, todos temos de acordar. Os teus vizinhos andam preocupados com a tua ausência e começam a duvidar da tua sanidade. Tens de regressar depressa antes que o mundo que conheces desapareça de vez. Tenta ser o último a entrar na carruagem para ficares junto à porta que, com tantas viagens, tem o ferrolho enferrujado. Aproveita a madrugada escura para saltares. Deves esconder-te no bosque onde permanecerás até despertares. A música da tua amada irá trazer-te de regresso a casa, ao teu salão, à tua Lisboa. Tens de ser corajoso e não te deixes abater pelas constantes barbaridades dos soldados nazis. Obedece-lhes, segue os passos dos teus irmãos, e escuta a melodia de Helen. Deixa que tudo aconteça como num sonho. Já não falta muito para voltares. O Lopes necessita da tua obra para que a normalidade regresse às vossas vidas.
Rui julga ter enlouquecido de vez. A voz do companheiro improvável mistura-se com a inconfundível melodia da irlandesa tocada pela própria ao piano. As sirenes e os berros dos oficiais alemães quase que desaparecem quando o escritor entra numa espécie de transe. Um empurrão violento trá-lo de volta à cidade demente. O comboio para o campo de extermínio de Auschwitz está a ser carregado com milhares de prisioneiros. As carruagens são imundas, os cheiros pestilentos e o espaço depressa se torna exíguo. Uma mão ajuda-o a entrar, por último, num vagão repleto de inocentes.
Incomoda tanto silêncio, incomoda mais do que se escutasse mil choros os se as lágrimas o afogassem. Aqui não há crianças, aqui só coabitam corações destroçados e almas abandonadas.
- Não te esqueças de saltar, Rui! Não te esqueças! Relembra-lhe o invisível. – A noite, quando cair, será tua aliada. Aproveita a lua nova para te esconderes depois do salto. Não te esqueças, procede conforme te instruí. Salta, salta com coragem de regresso à vida.

As memórias provocam-lhe violentas dores de cabeça. Nada parece real, o universo furta-lhe a realidade enquanto o castiga com intensas cefaleias.
Helen confiou nele e acreditou no seu amor.
Helen passeou com o escritor na mota que ele herdara do avô.
Helen mostrou-lhe onde vivia, abriu a porta e convidou-o a ouvir a sua obra inacabada.
Helen mostrou-lhe o seu corpo cor de mármore e pediu-lhe para lhe dizer tudo o que lhe viesse à cabeça.
Rui disse ter pavor de funerais, disse ter receio de morrer afogado.
Rui disse que gostaria de celebrar o centenário para conseguir escrever todas as histórias que tem para contar.
Helen afirmou gostar muito da sinceridade do escritor, do seu sorriso e da maneira como ele a olha desde a janela, como se a quisesse sua.
Helen regressou ao piano para tocar, e convidou-o a tomar banho consigo.
Helen gostaria de lhe descobrir os segredos, e ficou a saber o quanto ele a ama.
- Life, sometimes, fucking hurts, but it´s all we have. I feel safe with you, and I hope you feel safe with me, too. Look, here I am, crying, because I know you are going to disappear from my life, again. Where are you now? Do you really know where you are?
- Yes, this is my life, and I´m in love with you, Helen. But, right now, I got to jump. It´s something that I have to do. My life depends on it.
Antes do sonho terminar, a noite escura abraçou-o. Rui segue à risca as instruções do amigo improvável. Empurra com toda a força a porta de correr da composição, e atira-se para o vazio, sem hesitar.

Sem comentários:

Enviar um comentário