A
cidade cinzenta acorda por entre sombras e contraluzes. As portas das camaratas
abrem-se e os prisioneiros são obrigados a sair. Os reflexos dos corpos na neve
derretida espelham medo, angústia, desilusão. O ar gelado da manhã recebe-os e
eles não levantam os olhos do chão pois isso é muito arriscado. Como foi
possível a vida ter-lhes pregado semelhante partida?
A
camarata 72 ficou vazia de irmãos.
Os
soldados nazis conduzem a mudança enquanto disparam para o ar tiros
intimidatórios. Também eles se mostram tensos e nervosos, e vão gritando que
ninguém viverá para contar esta história.
Dois
prisioneiros arriscam a fuga e logo são abatidos. Segue-se um silêncio
insuportável. O sangue mancha a neve derretida, passeia nos olhares que se
cruzam e interrogam.
A
transferência dos prisoneiros continua com os militares cada vez mais atentos a
novas tentativas de fuga. Um dos sargentos que disparou não consegue evitar um
histérico ataque de riso. Outro resolve dar mais dois tiros nos corpos já
cadáveres.
As
sirenes do grande complexo tocam sem piedade.
Eles
apenas tinham de permanecer na fila…
O comandante aparece, atraído pelos disparos, no exato momento em que outro prisioneiro começa a correr na direção da camarata 72. O oficial aponta a Luger e dispara, ferindo-o com gravidade. Após os tiros, aproxima-se do homem que se encontra caído, de barriga para baixo, e vira-lhe o rosto com a bota para melhor o ver morrer. Acende um cigarro e fuma-o enquanto a vida do prisioneiro se apaga.
- Agora a tua memória está bem fresca. – exclama o
invisível. – Grava estas cenas para jamais as esqueceres. O coração dos homens
é cruel e violento, tu tens de o explicar na tua obra. O coração dos homens
transforma-se ao sentir-se poderoso. O poder é um veneno que cega e destrói,
que chega de dentro e de cima e vira tudo do avesso. Deixamos de ser quem somos
e perdemo-nos como numa tempestade de areia. Ficamos imprudentes e obcecados ao
manipular essa arma imaterial. O comboio para onde vos estão a levar tem como
destino Auschwitz. Tu acompanharás os teus camaradas até meio da viagem. Quando
a noite cair, saltarás da carruagem em andamento, e tudo acontecerá como se de um
sonho se tratasse. Ser-te-á mais fácil fazê-lo se pensares assim. Os soldados
alemães são muito poderosos e a única maneira de te protegeres é preservares a
memória de todos. Tens de sobreviver para contar esta história na tua obra.
Mais cedo ou mais tarde, todos temos de acordar. Os teus vizinhos andam
preocupados com a tua ausência e começam a duvidar da tua sanidade. Tens de
regressar depressa antes que o mundo que conheces desapareça de vez. Tenta ser
o último a entrar na carruagem para ficares junto à porta que, com tantas
viagens, tem o ferrolho enferrujado. Aproveita a madrugada escura para
saltares. Deves esconder-te no bosque onde permanecerás até despertares. A
música da tua amada irá trazer-te de regresso a casa, ao teu salão, à tua
Lisboa. Tens de ser corajoso e não te deixes abater pelas constantes
barbaridades dos soldados nazis. Obedece-lhes, segue os passos dos teus irmãos,
e escuta a melodia de Helen. Deixa que tudo aconteça como num sonho. Já não
falta muito para voltares. O Lopes necessita da tua obra para que a normalidade
regresse às vossas vidas.
Rui julga ter enlouquecido de vez. A voz do
companheiro improvável mistura-se com a inconfundível melodia da irlandesa
tocada pela própria ao piano. As sirenes e os berros dos oficiais alemães quase
que desaparecem quando o escritor entra numa espécie de transe. Um empurrão
violento trá-lo de volta à cidade demente. O comboio para o campo de extermínio
de Auschwitz está a ser carregado com milhares de prisioneiros. As carruagens
são imundas, os cheiros pestilentos e o espaço depressa se torna exíguo. Uma
mão ajuda-o a entrar, por último, num vagão repleto de inocentes.
Incomoda tanto silêncio, incomoda mais do que se
escutasse mil choros os se as lágrimas o afogassem. Aqui não há crianças, aqui só
coabitam corações destroçados e almas abandonadas.
- Não te esqueças de saltar, Rui! Não te esqueças!
Relembra-lhe o invisível. – A noite, quando cair, será tua aliada. Aproveita a
lua nova para te esconderes depois do salto. Não te esqueças, procede conforme
te instruí. Salta, salta com coragem de regresso à vida.
As memórias provocam-lhe violentas dores de cabeça.
Nada parece real, o universo furta-lhe a
realidade enquanto o castiga com intensas cefaleias.
Helen confiou nele e acreditou no seu amor.
Helen passeou com o escritor na mota que ele herdara
do avô.
Helen mostrou-lhe onde vivia, abriu a porta e
convidou-o a ouvir a sua obra inacabada.
Helen mostrou-lhe o seu corpo cor de mármore e
pediu-lhe para lhe dizer tudo o que lhe viesse à cabeça.
Rui disse ter pavor de funerais, disse ter receio de
morrer afogado.
Rui disse que gostaria de celebrar o centenário para
conseguir escrever todas as histórias que tem para contar.
Helen afirmou gostar muito da sinceridade do
escritor, do seu sorriso e da maneira como ele a olha desde a janela, como se a
quisesse sua.
Helen regressou ao piano para tocar, e convidou-o a tomar
banho consigo.
Helen gostaria de lhe descobrir os segredos, e ficou
a saber o quanto ele a ama.
- Life, sometimes, fucking hurts, but it´s all
we have. I feel safe with you, and I hope you feel safe with me, too. Look, here
I am, crying, because I know you are going to disappear from my life, again. Where
are you now? Do you really know where you are?
- Yes, this is my life, and I´m in love with you, Helen.
But, right now, I got to jump. It´s something that I have to do. My life depends
on it.
Antes do sonho terminar, a noite escura abraçou-o. Rui
segue à risca as instruções do amigo improvável. Empurra com toda a força a porta
de correr da composição, e atira-se para o vazio, sem hesitar.
Sem comentários:
Enviar um comentário