Os sonhos encerram um estranho poder. Conseguem
alterar a realidade, embrulham-na numa neblina densa e luminosa, como a que
envolve Sofia e a impede de se aquecer.
- Porque não vieste logo falar comigo, Afonso? O que
foi que eu te fiz para merecer isto? Era óbvio que precisávamos de conversar.
Nunca arranjavas tempo para termos uma conversa decente, e agora é que me
queres falar desse teu caso? Logo hoje… mas está bem, então senta-te, senta-te
e fala. Gostava de perceber como chegámos a este ponto. Desde que nos
conhecemos que te abri o coração, que sempre fui igual a mim mesma. Tu sabias
muito bem quem eu era e como eu era, e foi por isso que me escolheste para
partilhar a vida. Pergunto-me agora se tu és mesmo a pessoa que julguei que
fosses. Pergunto-me se não confundiste amor verdadeiro com atração. Será que
alguma vez te entregaste como eu me entreguei a ti? Está claro que não.
Começámos uma família, mas nem o nosso filho tem força para te prender. Não é
que o quisesse… Não queria que ficasses comigo pelo nosso filho, mas por mim.
Por mim, Sofia, a tua mulher, a tua amiga, a tua amante… Mas hoje, hoje é que
me vens com essa conversa de que os teus sentimentos te pregaram uma partida? Ensaiei
cada palavra das que te queria dizer, mas o choque é tão grande, a dor é tão
profunda, o vazio é tão negro que nenhuma palavra chega para te fazer sentir o
que me vai cá dentro. Por nós e pelo nosso filho tenho medo de te dizer coisas
que uma vez ditas nos poderão conduzir a um ponto sem retorno, o ponto de nos
odiarmos um ao outro. Prefiro calar-me e esquecer que existes. Tu é que me vens
com uma notícia dessas e apenas insistes em dizer que a culpa é minha? Não. Se
culpas há, são dos dois. Como querias que eu reagisse, como querias que
acedesse às tuas investidas sabendo que a tua boca tinha beijado outras bocas,
que as tuas mãos tinham acariciado outros corpos, quando trazias agarrado a ti
o cheiro de outras mulheres? Diz-me… como querias ter-me inteira? Mesmo assim, muitas foram as vezes em que
sucumbi ao desejo e que te amei com a sofreguidão dos desesperados… Nem isso tu
alguma vez percebeste. Agora, pelos vistos, é a sério. E apesar de tudo, apesar
de saber que a vida comigo deixou de te ser suportável, agradeço-te a
sinceridade… Mostra que, pelo menos, te resta ainda uma pinga de respeito por
mim. Transformaste o meu sonho em pesadelo. E agora, deixa-me só.
Um escritor afirmou que o sol não existe sem a sombra,
e que é essencial conhecer a noite. É na
escuridão que Sofia anda perdida. Tudo à sua volta está mais acelerado, tudo é
estridente, e ela que ambicionava poder ficar sozinha uma só noite, talvez já
esta madrugada. Naquele turbilhão era-lhe impossível imaginar uma outra vida,
encontrar um novo caminho para além deste, pensar em alguma coisa de diferente
ou de original. Mãe, já não amante, já não tão jovem como outrora, manietada
pelo tempo que também a encarcerou.
Ventos fortes sopram das bandas do norte. A relva
aparada com primor em redor do prédio, dança assustada com o sopro do vendaval
que parece que tudo vai levar. Que tudo levou mesmo.
E agora? Estes acontecimentos inglórios alteraram-lhe
a vida, viraram tudo do avesso e atiraram-na para um buraco negro de onde se
lhe afigura não haver saída. Quando chegar a casa, depois de ir buscar o filho,
Sofia terá de sonhar com um herói que a venha resgatar. Que sentido faz a vida se nela não encontrar
espaço para heróis? Imaginar-se numa outra existência, mitigar a dor, olhar
para ela de frente, tentar descobrir um rumo, algum sentido para as coisas.
- Uma história de amor, foda-se, será que é pedir
muito da vida? Quero um herói que me salve, alguém para quem eu seja o mundo e
a própria razão de existir. Quero alguém que me diga, de coração nas mãos e com
verdade no olhar, que me ama mais que à vida. Se possível, ainda nesta
encarnação.
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