Zé
Paulo decide voltar a casa. Pressente o universo mais tranquilo. Por vezes
seria bom se ele não acelerasse tanto. Tamanha correria pode fazer-lhe mal ao
coração, e ao coração das galáxias.
As
lembranças regressam, e revelam-se perturbadoras.
Uma
noite, ainda antes daquela fatídica madrugada, Zé Paulo entrou no escritório do
doutor Sepúlveda e confessou-lhe não andar a sentir-se bem. Disse-lhe ter até
pensado em sair de casa. O pai mal olhou para ele. Aconselhou-o a regressar
para a cama, e que devia esquecer o assunto, o melhor mesmo era fazer de conta
que a conversa nem acontecera.
Ele
cumpriu o pedido do pai, e começou a sentir-se mais cercado do que nunca. O
coração e a alma, que antes cantavam, gelaram no corpo. Não pode, não deve, não
faça, não tente, não incomode. Não, parecia ser sempre o início da resposta a
qualquer pergunta que fazia.
-
É para o proteger, José Paulo, o menino ainda é muito novo para entender. –
repetia-lhe a mãe após as dezenas de recusas paternas.
A
casa dos Sepúlveda apresentava uma decoração conservadora e muito austera.
Aquela quase excessiva perfeição nos detalhes incomodava-o, mas nada o
incomodava mais que a brancura do corrimão, a solene passadeira vermelha que
atapetava os degraus da escadaria de carvalho, os estranhos padrões dos papéis
aveludados que forravam as paredes carregadas de tapeçarias, e todos os
candeeiros e lustres que pela casa se encontravam espalhados. Zé Paulo também não
suportava o cheiro dos charutos do doutor Sepúlveda que escapavam do escritório
até ao salão, e depois viajavam pelo corredor até à entrada da cozinha acabando
por invadir a sala de jantar.
Relembra
os cheiros das avós, que também permaneceram pela casa muito tempo após elas
terem falecido, e os famosos ataques de pânico de Deolinda, tão teatrais como
os gestos ensaiados com que, perante os filhos, fazia questão em tomar os
medicamentos que o marido lhe apontava.
Certo
dia, escutou uma rara conversa entre as avós, em que a avó materna confessou
que a Deolinda, quando casou, já levava o Alexandre na barriga. As senhoras
falaram e falaram, enquanto bebiam o vinho de uma velha garrafa de Porto que
tinha sido oferecida ao Sepúlveda por um doente seu amigo. Entretiveram-se
assim, pelas conversas, até deixarem de sentir nos lábios o doce e húmido sabor
daquele néctar.
Zé
Paulo recorda várias vezes o passado, e dói ter-lhe sido impossível amar o pai.
Quantas e quantas vezes sonhou ele com acidentes de viação em que o pai morria,
ou ficava gravemente ferido. Eram poucas as noites em que isso não acontecia.
Depois chorava, pois estes não eram pensamentos próprios de um filho decente.
Jamais imaginou que as coisas entre eles pudessem atingir aquele limite. Se ele
e os irmãos tivessem apenas sido criados pelos pais, hoje não seriam grande
coisa. Crianças sozinhas que cresceram praticamente sozinhas.
O
senhor doutor Ezequiel Sepúlveda parecia não ter outros pensamentos que não
fossem acerca de assuntos de dinheiros. Zé Paulo e os irmãos achavam que ele
tinha errado na vocação, devia ter sido economista ou banqueiro e jamais um
cirurgião. O homem era um controlador, queria saber ou descobrir todas as
verdades e segredos, mas apenas conseguia obter máscaras e mais atos encenados,
quer dos filhos, quer da esposa. Sepúlveda era rígido, maldoso e obstinado no
que dizia respeito ao futuro dos filhos. As suas vontades eram para ser
respeitadas, custasse o que custasse, doesse a quem doesse. Seria inaceitável
negligenciar algo tão importante como a educação dos miúdos. Já a mãe Deolinda,
refugiava-se invariavelmente na aparente fragilidade da sua saúde.
É
nisto que Zé Paulo vai pensando na caminhada de regresso a casa. O acidente da
vizinha despertou-lhe estas memórias.
O
irmão Alexandre, um dia, confrontou o pai, e chamou-o avarento, hipócrita, e que
era um mentiroso. Disse-lhe mesmo que aqueles modos eram como um veneno, e
Ezequiel um carrasco envenenador.
Quando
a arma disparou, Deolinda caiu no chão e ficou desmaiada por muito tempo.
Sepúlveda não se mexeu. Tudo o que a mãe sabia, e tudo o que não conseguiu
evitar, com ela também desabou. Acordou deitada na cama, e olhou fixamente para
o teto do quarto sem falar. Tinha receio de perguntar, e fechou de novo os
olhos para tentar desaparecer.
-
A bala não lhe tocou, mulher! Não sei porque decidi falhar. Disparei para o
lado. Se era isto que querias saber, aí o tens. O cabrão do rapaz saiu a correr
de casa mais o irmão. Ainda devem estar a tremer. Podes ficar descansada que a
bala não lhe tocou! – exclamou Sepúlveda.
Falhar
o alvo era coisa impossível, os irmãos sabiam que era algo que não devia ter
acontecido.
Os
gritos de Deolinda a ameaçar Ezequiel Sepúlveda, caso ele seguisse os filhos,
de nada serviram. Os rapazes ainda mal tinham acabado de descer o primeiro
lanço de escadas, já ele apontava a pistola para o peito desnudado de Zé Paulo,
que ficou atónito a olhar o pai. Alexandre bem o puxou, mas naquele instante o
corpo de Zé Paulo ganhou uma densidade e uma massa tal que nenhum ser humano o
conseguiria mover.
Ele
fechou os olhos quando o pai disparou.
Alexandre
estremeceu. Levou as mãos à cabeça, e pela boca as passou, e quase vomitou.
Zé
Paulo abriu os olhos.
O
peito estava limpo e fechado.
A
dor que ali morava, já ele a conhecia há anos.
Alexandre
arrastou dali o irmão antes que o pai voltasse a disparar.
Correram
os dois como loucos para longe daquela casa.
Deolinda,
depois do tornado, imaginou cenários atrozes, e torturava-se por não ter sido
capaz de ficar em silêncio quando devia. Passou a dizer coisas a si própria de
fazer perder a cabeça.
Sepúlveda
sempre lhe facultara uma vida protegida. Os desejos e caprichos da senhora foram
todos possibilitados pelo médico. De início ainda a tratava melhor, de forma
respeitosa e cavalheiresca, mesmo sabendo que o coração de Deolinda amava, de
alma e coração, o seu grande amigo de infância. Ela nunca o disse, nem
precisava. Assim que se falava no Peres, a pele da mulher rejuvenescia, os
olhos brilhavam, e as palavras que lhe saiam da boca quase deixavam de fazer
sentido.
-
Mata-me, Ezequiel! Porque não me matas? Afinal, é disso mesmo que se trata,
sempre foi por causa disso que a nossa vida se foi desmoronando, por essa tua
eterna suspeita de que o Alexandre seja filho do Peres. Mata-me, trata de vez
esse teu assunto, mas deixa os nossos filhos em paz. – disse Deolinda, ainda
pálida, ainda deitada na cama onde o marido a colocou.
O
revólver aquecia-lhe o dedo e pesava-lhe na mão. Ele olhou-a como um louco incapaz
de raciocinar, e ela insistiu:
-
Mata-me, anda, coloca de vez um ponto final nesse teu tormento. Sê um homem, sê
corajoso e mata-me, mas deixa os meus filhos em paz.
-
Estou farto disto! Que grande merda! Estás a arriscar demasiado, olha que já estive
mais longe de perder a cabeça de vez…
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