quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A MESA DO ESCRITOR




Há dias em que se torna fácil escutar as palavras. Tudo acontece com naturalidade, e a obra avança ao ritmo compassado das vozes do escritor.
Há dias em que tal não acontece. São os dias cinzentos que Rui vem combatendo.
A cadência das palavras aquece-lhe a alma e acorda-o para outras realidades. Antes que o vento se esqueça de soprar, antes que a noite eterna faça descer o seu manto escuro, antes que as melodias caiam no esquecimento, o escritor tem de concluir a obra. O livro que a editora e o Lopes aguardam, com expectativa, é apenas mais uma etapa do todo que o escritor pretende construir.
Enquanto Rui espera, de pé, que a “sua” mesa fique vaga, o empregado Abílio cumprimenta-o com entusiamo, como se de um familiar se tratasse.
- Doutor Rui, seja bem aparecido! Já começávamos a sentir a sua falta. Eu disse, cá para os meus botões, que a gripe malvada era bem capaz de o ter apanhado. O doutor não se incomode que os senhores que estão sentados na “sua” mesa acabaram mesmo agora de pedir os cafés. É só mais um minutinho, doutor, e já se vai poder sentar.
Que diferença faz agora a renovada cafetaria daqueles dias em que nela se podia escutar o pensamento, e o senhor Abílio, então, nem se fala. Parece outra pessoa. Em boa altura os proprietários resolveram dar uma alma nova ao negócio. Longe vão os meses de indecisão em que ponderavam fechar o estabelecimento.
Rui não sabe onde para Daniel. O invisível terá de o ajudar a concertar as vidas das suas personagens, tal como tem tentado endireitar a sua. Ele sabe, tão bem como o autor, quais são as personagens reais e quais são fruto da fértil imaginação do romancista. Ao ajudar as primeiras, acabará por facultar as pistas necessárias para que o escritor consiga dedicar-se às segundas, e fazer avançar a obra.
- Olá Rui, porque me chamaste? Não estás à espera do Lopes? Talvez esta não seja a melhor altura para conversas. Tens ainda muita coisa por resolver, mas foi bom teres tomado a decisão de escrever todos os dias. Ficarás mais próximo da história, escutarás mais vezes essas vozes, e a obra avançará, ligeira, na direção devida. Sábia, bem sábia essa tua resolução. Vejo que foi benéfica a tua visita à cidade da camarata 72. Deves ter noção do que és, de quem és e do que fazes, colocar as coisas em perspetiva, ponderar, relativizar. Essa viagem foi importante para ti. Fico contente. Quanto às personagens da tua obra, elas próprias se encarregarão de te fornecer pistas para o desenvolvimento da história. Continua atento a tudo e a todos, não pares de escutar. Depois, escreve, tal como prometeste. A mim, preocupa-me muito a mãe do Jorge. Talvez não seja má ideia começar por aí. O miúdo sofre com a doença da mãe, e sofre ao sentir-se incapaz de a proteger, logo ele que tanto a adora. Ajuda-o, eu já fiz o que me competia, deixei-lhe algumas pistas para o acalmar. Tem atenção, toma cuidado. Olha que a senhora pode muito bem vir a cometer uma loucura idêntica à minha, e isso seria devastador para o rapaz.
As bicas chegam à “mesa do escritor”. Os dois homens mantêm as conversas enquanto bebem, devagar, o néctar quente e espumoso. Septuagenários bem vestidos, de aspeto erudito a quem a reforma veio facultar horários complacentes com os prazeres da mesa e da conversa.
O Lopes deve estar a chegar. A pontualidade é um dos seus atributos, e ao telefone estava genuinamente feliz por ter escutado a voz do escritor. Foram muitos dias sem dar notícias. Esteve ausente, perdido no mais negro dos tempos da história, na mais sombria das estâncias.
O tempo pregou-lhe essa partida, o tempo e Daniel.
- Sim, o tempo e eu! Estavas a precisar de uma viagem dessa natureza para dar uso correto aos queixumes. Afinal, de que te queixas, que coisas fúteis e sem importância te andam a transtornar? Andavas demasiado centrado em ti, preso naquele teu apartamento de vistas ímpares, encarcerado no que não conseguias fazer acontecer. Nada disso tem importância, Rui, isso são merdas sem importância nenhuma. E Helen? Porque não foste a correr bater-lhe à porta? Porque tens comportamentos previsíveis ao invés de assumires o risco de uma vez por todas? Hoje tens de ir ter com a irlandesa, Rui, vais mesmo ter de o fazer. Não podes remendar o passado, mas o futuro pode muito bem ser tudo aquilo que quiseres. É só estares atento a tudo e a todos, e manteres-te permanentemente à escuta.
A conversa amena que os homens alimentavam à mesa do restaurante foi dada por terminada. Os dois levantam-se e dirigem-se ao balcão
- A mesa já está livre, doutor. Força, faça o favor de se sentar. – afirma o sorridente Abílio.

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