quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

FEIRA DA LADRA



Ele segreda palavras ao amigo. Tinham sido demasiados dias fechado no apartamento sem respirar o ar da cidade. Rui precisa de sair dali rapidamente, nem que seja apenas para ir beber um café e andar um pouco.
- Vou espreitar a Lisboa que amo, respirar o seu aroma, quero ver se está igual ou se mudou.
Rui desce as escadas e sai pela porta do prédio em direção à rua. Hoje é sábado, segue a direção da Rua Voz do Operário, sem saber para onde ir, mas depressa se deixa apanhar pelo frenesim que chega do Campo de Santa Clara. A feira está montada desde bem cedo, como é costume. A feira está sempre montada, terças e sábados, para que tudo se venda e tudo se possa comprar. O escritor lança a vista pelos faqueiros de prata, e salta para os espelhos e as botas de marca já gastas de tanto uso. Ali ao lado estão rádios antigos, coleções de perucas colocadas em bustos aveludados, bonecas de porcelana da china, coleções de máquinas fotográficas e fotografias de vidas de outros. Mais abaixo encontra malas e malinhas de mão decoradas com imagens de estrelas de cinema dos anos cinquenta e sessenta, candeeiros e lustres de teto, instrumentos musicais, relógios de pulso, de mesa, de bolso, de parede e de cuco, relógios despertadores, gramofones, discos antigos, pinturas, móveis de época, bonecas de porcelana, bonecas de trapos, mais calçado, chapéus e todo o tipo de vestuário. Um velho senhor de pele marcada tenta vender livros, muitos livros, e estatuetas africanas que jazem abandonadas no meio de peças de joalharia. O homem da concertina vai tocando perto de uma banca onde moedas, selos e postais convivem com brinquedos antigos de madeira e outros mais recentes em plástico e em metal. Aqui negoceia o homem das ferramentas, acolá, o homem dos sete instrumentos, que também entende de cromos e de cadernetas do século passado. Depois há trajes e roupas do tempo das grandes guerras, vizinhas de máquinas de escrever e de costurar. Duas senhoras vendem caixas de garrafas de espumante e garrafões de vinho branco e vinho tinto. Rui passa algum tempo a apreciar duas câmaras de filmar, e vasculha numa caixa de cassetes de áudio e de vídeo. Um casal de idosos tem anéis, pulseiras, brincos e muitos colares para vender. Numa banca instável, dois turistas ingleses olham para tinteiros enquanto pagam as canetas. Também ali há botões, maçanetas de portas e óculos para todos os gostos, e o povo lá vai procurando, vendendo, regateando, e ainda nem bateram as dez da manhã.
Que diferença para a cidade da camarata 72, que diferença esta realidade do pesadelo onde esteve encarcerado.
Um dia de cada vez.
Estar atento a todos os silêncios.
Estar atento a cada palavra, a cada gesto.
Ficar atento a cada som e melodia.
O passado erigiu muros bem altos, grossos e negros, muros que separaram os homens uns dos outros, construídos com o intuito de os destrinçar, muros invisíveis criados pelos que se julgavam bem mais e bem melhor. Desse passado ainda nos chegam trágicas descobertas, reflexos viscosos de ideais, de filosofias mesquinhas, decadentes, doentias.
Que diferença nos olhos do escritor.
Que diferença nos gestos e no andar.
Que diferença do frio, do gelo, da doença, da infâmia e dos horrores perpetrados pelos carrascos nazis. As vozes dos militares ainda lhe ecoam na cabeça, e os rostos dos companheiros, e o que diziam. Estavam preparados para tudo só para tentar a fuga para um outro qualquer lugar, ou para um outro tempo.
Que diferença.
Há sonhos e pesadelos tão reais, tão capazes de nos mudar para sempre.
Há sonhos, e pesadelos, e realidades de sonho e pesadelo, doces e amargas, neste universo  desconhecido onde existimos minúsculos, invisíveis, irreais.
Hoje Lisboa acordou aquecida por um inesperado dia primaveril, e vibra na sua luminosidade tão particular.
Helen não responde, ainda não responde. Talvez esteja a descansar. Rui insiste mais quatro vezes, prefere não lhe deixar qualquer mensagem. Daqui a pouco fará nova tentativa.
O Lopes não responde. O que estará o amigo a fazer?
As dez chegaram, as dez e meia, e as onze e tal.
- Está, Rui? Ó homem, mas onde é que tu tens estado enfiado que trazes toda a gente aflita à tua procura? - pergunta o Lopes aliviado ao escutar de novo a voz do escritor. - Fazes alguma ideia de quantas pessoas já me perguntaram por ti?
- Bom dia, Lopes, nem sabes como é bom ouvir-te, meu caro amigo! Hoje vou almoçar ao sítio do costume. Podias fazer-me companhia, e quem paga o almoço sou eu. Precisamos de falar, colocar as conversas em dia. Esta última semana saí em viagem, ausentei-me, mas agora sinto-me capaz de escrever todos os dias sem ter receio de ser atacado pela falta de inspiração. Vês, são ou não são boas notícias?
O Lopes não reage. Fica calado, do outro lado, por uns instantes, até conseguir dialogar.
- Estás a tentar convencer-me de que vais escrever todos os dias? Se isso acontecer, é a melhor notícia que me podias dar. Não, não é nada!  A melhor notícia é saber-te, finalmente, de regresso a casa. Quero lá saber dos sítios por onde andaste, quero lá saber, mas estou felicíssimo por te ter de volta, meu caro amigo. Lá estarei para almoçarmos, com todo o prazer, e prepara-te pois vou dar-te um abraço daqueles!
Rui sorri, Afonso adivinha-o.
- Estarei por lá a partir da uma, na mesa de sempre, à tua espera. Fica bem, até já!
Helen está sempre no seu pensamento. Volta a ligar-lhe, uma, duas, três e quatro vezes. Nenhuma música lhe chega do outro lado, só aquele poético "após o sinal, grave a sua mensagem".
É meio-dia, o sol de inverno brilha com intensidade na cenográfica Feira da Ladra. E vem-lhe à memória uma frase batida, hoje é o primeiro dia do resto da sua vida, e as palavras do Sérgio continuam a fazer-lhe cócegas na alma:

"E a rapariga
vende tudo o que trazia
troca a tristeza
pela alegria

E todos querem
regateiam
amarguras
ilusões
trapos e cacos e contradições"

Hoje é sábado,  outra vez. O seu coração é incapaz de dizer "tanto faz", acaba de chegar da guerra com os olhos na paz.
O que veio o escritor roubar à feira? O que vai o escritor levar da Feira da Ladra dos amantes? Memórias, poemas, sons e memórias de tempos perdidos que precisava resgatar.
O telemóvel vibra e toca no bolso.
O nome da irlandesa acendido no visor.
Agora ele está feliz.


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