Ele segreda palavras ao amigo. Tinham sido
demasiados dias fechado no apartamento sem respirar o ar da cidade. Rui precisa
de sair dali rapidamente, nem que seja apenas para ir beber um café e andar um
pouco.
- Vou espreitar a Lisboa que amo, respirar o seu
aroma, quero ver se está igual ou se mudou.
Rui desce as escadas e sai pela porta do prédio em
direção à rua. Hoje é sábado, segue a direção da Rua Voz do Operário, sem saber
para onde ir, mas depressa se deixa apanhar pelo frenesim que chega do Campo de
Santa Clara. A feira está montada desde bem cedo, como é costume. A feira está
sempre montada, terças e sábados, para que tudo se venda e tudo se possa
comprar. O escritor lança a vista pelos faqueiros de prata, e salta para os
espelhos e as botas de marca já gastas de tanto uso. Ali ao lado estão rádios
antigos, coleções de perucas colocadas em bustos aveludados, bonecas de
porcelana da china, coleções de máquinas fotográficas e fotografias de vidas de
outros. Mais abaixo encontra malas e malinhas de mão decoradas com imagens de
estrelas de cinema dos anos cinquenta e sessenta, candeeiros e lustres de teto,
instrumentos musicais, relógios de pulso, de mesa, de bolso, de parede e de
cuco, relógios despertadores, gramofones, discos antigos, pinturas, móveis de
época, bonecas de porcelana, bonecas de trapos, mais calçado, chapéus e todo o
tipo de vestuário. Um velho senhor de pele marcada tenta vender livros, muitos
livros, e estatuetas africanas que jazem abandonadas no meio de peças de
joalharia. O homem da concertina vai tocando perto de uma banca onde moedas,
selos e postais convivem com brinquedos antigos de madeira e outros mais recentes
em plástico e em metal. Aqui negoceia o homem das ferramentas, acolá, o homem
dos sete instrumentos, que também entende de cromos e de cadernetas do século
passado. Depois há trajes e roupas do tempo das grandes guerras, vizinhas de máquinas
de escrever e de costurar. Duas senhoras vendem caixas de garrafas de espumante
e garrafões de vinho branco e vinho tinto. Rui passa algum tempo a apreciar
duas câmaras de filmar, e vasculha numa caixa de cassetes de áudio e de vídeo.
Um casal de idosos tem anéis, pulseiras, brincos e muitos colares para vender.
Numa banca instável, dois turistas ingleses olham para tinteiros enquanto pagam
as canetas. Também ali há botões, maçanetas de portas e óculos para todos os
gostos, e o povo lá vai procurando, vendendo, regateando, e ainda nem bateram
as dez da manhã.
Que
diferença para a cidade da camarata 72, que diferença esta realidade do
pesadelo onde esteve encarcerado.
Um
dia de cada vez.
Estar
atento a todos os silêncios.
Estar
atento a cada palavra, a cada gesto.
Ficar
atento a cada som e melodia.
O
passado erigiu muros bem altos, grossos e negros, muros que separaram
os homens uns dos outros, construídos com o intuito de os destrinçar,
muros invisíveis criados pelos que se julgavam bem mais e bem
melhor. Desse passado ainda nos chegam trágicas descobertas, reflexos
viscosos de ideais, de filosofias mesquinhas, decadentes, doentias.
Que
diferença nos olhos do escritor.
Que
diferença nos gestos e no andar.
Que
diferença do frio, do gelo, da doença, da infâmia e dos
horrores perpetrados pelos carrascos nazis. As vozes dos militares ainda
lhe ecoam na cabeça, e os rostos dos companheiros, e o que diziam. Estavam
preparados para tudo só para tentar a fuga para um outro qualquer lugar, ou
para um outro tempo.
Que
diferença.
Há
sonhos e pesadelos tão reais, tão capazes de nos mudar para sempre.
Há
sonhos, e pesadelos, e realidades de sonho e pesadelo, doces e amargas, neste
universo desconhecido onde existimos minúsculos, invisíveis, irreais.
Hoje
Lisboa acordou aquecida por um inesperado dia primaveril, e vibra na sua
luminosidade tão particular.
Helen
não responde, ainda não responde. Talvez esteja a descansar. Rui insiste mais
quatro vezes, prefere não lhe deixar qualquer mensagem. Daqui a pouco fará nova
tentativa.
O
Lopes não responde. O que estará o amigo a fazer?
As
dez chegaram, as dez e meia, e as onze e tal.
-
Está, Rui? Ó homem, mas onde é que tu tens estado enfiado que trazes toda a
gente aflita à tua procura? - pergunta o Lopes aliviado ao escutar de novo a
voz do escritor. - Fazes alguma ideia de quantas pessoas já me perguntaram por
ti?
-
Bom dia, Lopes, nem sabes como é bom ouvir-te, meu caro amigo! Hoje vou almoçar
ao sítio do costume. Podias fazer-me companhia, e quem paga o almoço sou eu.
Precisamos de falar, colocar as conversas em dia. Esta última semana saí em
viagem, ausentei-me, mas agora sinto-me capaz de escrever todos os dias sem ter
receio de ser atacado pela falta de inspiração. Vês, são ou não são boas
notícias?
O
Lopes não reage. Fica calado, do outro lado, por uns instantes, até conseguir
dialogar.
-
Estás a tentar convencer-me de que vais escrever todos os dias? Se isso
acontecer, é a melhor notícia que me podias dar. Não, não é nada! A
melhor notícia é saber-te, finalmente, de regresso a casa. Quero lá
saber dos sítios por onde andaste, quero lá saber, mas estou felicíssimo por te
ter de volta, meu caro amigo. Lá estarei para almoçarmos, com todo o prazer, e
prepara-te pois vou dar-te um abraço daqueles!
Rui
sorri, Afonso adivinha-o.
-
Estarei por lá a partir da uma, na mesa de sempre, à tua espera. Fica bem, até
já!
Helen
está sempre no seu pensamento. Volta a ligar-lhe, uma, duas, três e quatro
vezes. Nenhuma música lhe chega do outro lado, só aquele poético "após o
sinal, grave a sua mensagem".
É
meio-dia, o sol de inverno brilha com intensidade na cenográfica Feira da
Ladra. E vem-lhe à memória uma frase batida, hoje é o primeiro dia do resto da
sua vida, e as palavras do Sérgio continuam a fazer-lhe cócegas na alma:
"E
a rapariga
vende
tudo o que trazia
troca
a tristeza
pela
alegria
E
todos querem
regateiam
amarguras
ilusões
trapos
e cacos e contradições"
Hoje
é sábado, outra vez. O seu coração é incapaz de dizer "tanto
faz", acaba de chegar da guerra com os olhos na paz.
O
que veio o escritor roubar à feira? O que vai o escritor levar da Feira da
Ladra dos amantes? Memórias, poemas, sons e memórias de tempos perdidos que
precisava resgatar.
O
telemóvel vibra e toca no bolso.
O
nome da irlandesa acendido no visor.
Agora
ele está feliz.
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